O tema é espinhoso, envolto por mitos, desconhecimento, fantasias e teorias persecutórias. A cada antevéspera de disputas eleitorais é requentada a discussão em torno da confiabilidade das urnas eletrônicas. Não que não possa ser feita – na democracia tudo pode e deve ser investigado; é nas ditaduras que não se permite falar em fraude e corrupção. Contudo, é exigível que o debate tenha pé na realidade, que esteja alicerçado em bases consistentes, sérias e racionais. É irresponsável e antidemocrático propagar boatos infundados, pois acendem um ambiente de alarmismo, medo e insegurança.
O tema volta à pauta, impulsionado pelo atual presidente da República e reverberado entre seus seguidores fanáticos e circunstanciais aliados. A estratégia é manjada, segue o mesmo roteiro de 2018, quando cogitou do risco de não ser o eleito. Apesar de ele e seus três filhos terem obtido quase 20 mandatos parlamentares somados ao longo dos 30 últimos anos, a maioria sob o sistema de urnas eletrônicas, insistem em disseminar a desconfiança. Ameaça que não deixará a cadeira presidencial se perder no voto eletrônico. Novamente antevê a possibilidade de ser derrotado na próxima gesta e logo trata de se vacinar contra vírus imaginário; contra o real jura que não.
Recordo que nas eleições presidenciais de 2014, o candidato derrotado requereu uma auditagem no sistema de urnas eletrônicas para sustentar um pedido de recontagem dos votos. O TSE atendeu, abriu todos os dados e, ao fim, constatou-se que não havia nenhuma adulteração.
A urna eletrônica é utilizada há 22 anos, está presente em 25 países, entre eles Canadá e vários estados dos EUA, é segura, reúne diversas barreiras para impedir a fraude. Não pode ser invadida por hackers, pois não tem conexão com a internet (diferente dos sistemas eletrônicos do STF, STJ e TJRS, recentemente alvo de crimes cibernéticos).
O programa é constantemente atualizado e exposto a verificações e auditorias, das quais participam partidos políticos, MP, OAB e imprensa. A comunidade científica é chamada a participar do desenvolvimento do software e colocar os mecanismos de segurança à prova para identificar eventuais vulnerabilidades. O projeto é todo do TSE.
É (outro) mito que a cédula impressa seja mais segura. Quem trabalhou com ela sabe que põe risco ao sigilo do voto, podendo servir, se exclusiva, como meio de prestação de contas a quem o comprou, sobretudo em tempos de fortalecimento e expansão do poder das milícias.
Compreendo que a falta de domínio técnico dos eleitores em relação ao sistema gere dúvidas e que acirramento da luta política seja terreno fértil para fake news; todavia não é honesto dar mais valor aos fatos que a rumores.
Ainda, atentem os incautos que a PEC 135/19, de autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), tramitando em comissão especial há bocado criada pelo presidente da Câmara Federal, não prevê o regresso ao sistema de cédulas impressas, tal qual conhecemos no século passado.
Novamente há desinformação, distorção e manipulação de seguidores.
A proposta “Acrescenta o § 12 ao art. 14, da Constituição Federal, dispondo que, na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.
Ironicamente, o modelo proposto é quase idêntico ao adotado na Venezuela por Hugo Chávez. Conheci o funcionamento quando lá atuei como observador brasileiro no pleito em que o partido de Nicolás Maduro elegeu quase todos os governadores.
Na República Bolivariana a auditoria é feita por amostragem. São sorteadas algumas secções eleitorais onde, tão logo encerrada votação, é realizado o escrutínio das cédulas impressas, depositadas na urna anexa à eletrônica e, ao fim, os números de uma e outra são confrontados, devendo coincidir. Nos casos que testemunhei e em outros divulgados, assim aconteceu.
Portanto, é algo sobre o que devemos refletir, despidos de dogmas, paixões, ilusões, não refratários à possibilidade de aperfeiçoamento do sistema eleitoral; mas também, sem abandonar as justificadas razões para confiar na suficiência dos controles já instituídos.