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Um monumento a Belchior

Vivo num lugar comum de gente honesta, boa e comovida que caminha para a morte pensando em vencer na vida. Há duas semanas a cidade ganhou repercussão nacional e supreendentemente não foi pela habitual Oktoberfest ou por algo relacionado à “cultura alemã”, mas pela morte de Belchior, um dos maiores artistas brasileiros. Naquela manhã de domingo, o dia nasceu ensolarado e o coração bateu mais forte, assim como de meu amigo João, também fã do cantor e compositor cearense.

‘John’, o tempo você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer meu amigo que a relação de Santa Cruz com cearenses remonta a uma tradição secular. Em 17 de outubro de 1900, chegaram à cidade 90 cearenses enviados pelo Governo do Estado do RS para serem empregados em terras devolutas. Naquele contexto, uma epidemia de varíola levou a óbito 3 cearenses e o risco de proliferação da doença determinou num ‘apartheid’ social, uma vez que aquelas famílias foram conduzidas e deixadas à própria sorte na extensão serrana do município, na cidade hoje reconhecida como Herveiras.  

Sei que assim falando pensas que essa história é igual à de milhares de trabalhadores que ao longo do século XX repetiram a mesma saga, desceram do norte e no sul vivem na rua. Os humilhados dos parques que o poeta se recusava a denominar de nordestinos, pois considerava que o lugar de onde vinha não era a terra dos esquecidos, a nação dos condenados, nem o sertão dos ofendidos! Gente de bairro afastado, como os cearenses do Beckenkamp que aqui desembarcaram e construíram praças, viadutos, estradas nuas. Muitos pretos, pobres, estudantes, mulheres, os invisíveis das ruas com suas redes, cintos e carteiras. 

Por força do destino se cumpriu a profecia do rapaz latino-americano que finalizou sua divina comédia humana numa cidade de interior, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes. Minha dor é perceber que paradoxalmente a história de Belchior em Santa Cruz se confunde com a de muitos outros conterrâneos que chegaram à morte sem ter visto a vida. Sonho e escrevo em letras grandes que o Poder Público Municipal e a Sociedade Civil santa-cruzense precisam oferecer um monumento à cidade em homenagem ao poeta, cantor e compositor cearense, ao legado de uma obra singular e universal. Mas, também, como forma de afirmar a memória histórica da presença multicultural dos muitos que aqui viveram e que aqui morreram. Muito obrigado Belchior, teu infinito sou eu, sou eu, sou eu, sou eu!

Mateus Silva Skolaude
Professor de História e Sociologia na Escola Educar-se
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