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Tragédia da Boate Kiss | Fotografia com técnica de colódio úmido é usada em projeto que visa construir memória

O incêndio completou 10 anos no mês de janeiro e é temática de projeto do curso de Desenho Industrial

Como o processo de fotografia é artesanal, feito sobre um vidro, não há possibilidade
de fazer dois retratos iguais
SAMARA WOBETO

A busca pela memória da tragédia da Boate Kiss é uma das mais fortes bandeiras de luta de sobreviventes, pais, amigos e familiares de vítimas. A pergunta “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”, cuja campanha marca os dez anos do incêndio, busca acionar as memórias coletivas da tragédia. E esse também é o objetivo do projeto “Fotografar para lembrar”, coordenado por Ricardo Ravanello, professor de fotografia do curso de Desenho Industrial da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

O projeto fotográfico surgiu, no final de 2019, com o objetivo de contribuir para a criação de memórias. “Eu sempre digo que é uma espécie de obrigação, dentro do ofício dos fotógrafos, se interessar e documentar esses fatos que são muito importantes para a humanidade”, destaca Ricardo. O docente explica que queria fazer algo para contribuir com o registro da tragédia que marcou Santa Maria, que também é sua cidade. Mas ele não queria um modo comum de fotografar, como é o processo digital.

A técnica

A técnica escolhida para o projeto foi a do colódio úmido. De acordo com Ricardo, seu surgimento remonta aos anos de 1850, uma década após a invenção da fotografia. A lente da câmera com que a fotografia é feita também é dessa época, o que, para o fotógrafo, acrescenta ao projeto uma camada de informação e de profundidade que a fotografia digital não possibilita. A câmera usada tem cerca de 100 anos e foi adquirida em um leilão em São Paulo.

A escolha pela técnica teve algumas motivações que, segundo Ricardo, foram descobertas na medida em que ele pesquisava e estudava sobre processos antigos de fotografia. A primeira característica é que a técnica de fotografar com colódio úmido é um processo lento de execução. Ricardo relata que, enquanto prepara o equipamento e explica como a fotografia será feita, é comum que sobreviventes, pais, familiares e amigos de vítimas e profissionais que trabalharam envolvidos com o incêndio ou com suas consequências contem suas histórias. “Essa lentidão da foto cria uma espécie de espaço para ter esses encontros, para ter essas conversas. É oportunizar para as pessoas uma experiência com a fotografia para construir algum tipo de memória positiva “, reflete Ricardo.

Como o processo de fotografia é artesanal, feito sobre um vidro, não há possibilidade de fazer dois retratos iguais. “Cada fotografia é absolutamente única, como era a vida das pessoas que se foram. Tem o espelhamento dessa característica”, explica Ricardo.

Outro ponto que ele destaca é que, por conta de a fotografia levar mais tempo para ser feita – pode variar de 2 a 10 segundos – e da necessidade de muita luz, a pessoa fotografada precisa encarar a câmera e não se mexer. Para Ricardo, essas características trazem uma responsabilidade para quem é fotografado. “Eu acho que cria uma relação bacana, me parece que as pessoas se revelam mais, se colocam mais na foto”, descreve. Para Gabriel, a experiência de ser fotografado foi marcante. “Eu pude levar minha família para acompanhar e envolvê-los nesse processo de aceitar essa parte da minha história, aceitar que eu sou sobrevivente”, relata Gabriel.

A quarta característica é composta pelos elementos de textura que podem aparecer no resultado final: como o processo compreende o uso e a manipulação de líquidos sobre o vidro para a revelação e fixação, há possibilidade de as bordas ficarem irregulares. “Conforme o corte da câmera, às vezes pega aqui no braço, por exemplo, e aí tu não sabe se ali tem uma queimadura da pessoa ou é uma borda do processo, elas se fundem, elas se misturam”, descreve Ricardo. Além disso, por usar prata como material para a preparação do vidro, é uma imagem formada por um metal nobre, o que a torna especial.

Para Ricardo, contudo, foi um elemento histórico que deu a certeza de que esse era o processo adequado para registrar a história da Kiss. A nitrocelulose, base da criação do colódio, foi inventada em 1848 como uma tecnologia militar, usada como explosivo. Em 1849, um médico descobriu que, ao diluir a substância com álcool e éter, criava-se uma emulsão – o colódio – que pode ser usada para curar ferimentos de guerra. Em 1851, o colódio foi misturado com sais, o que permitiu a invenção do processo fotográfico. “Tem isso no processo: uma tecnologia militar que vira uma tecnologia de cura e que vira uma tecnologia artística. Nenhum outro processo tem isso”, descreve o docente.

Além disso, quando as fotografias são digitalizadas e ampliadas, outro elemento significativo se torna visível: “Quando tu olha para ela ampliada, em que perde a noção das feições do rosto, de claro e escuro, parece uma fuligem, parece aquela fuligem quase do resto do incêndio”, conta Ricardo. Para ele, as imagens também são resultados da tragédia: “A expressão das pessoas e todas as histórias que têm atrás delas, são todas frutos desse incêndio”.

Construção da memória

Já foram feitas cerca de 47 fotografias, meta é chegar a 50. Acervo será doado à AVTSM e destinado à composição de um mural no futuro memorial

Marcelo Canellas, jornalista santa-mariense que cobriu a tragédia e suas repercussões a nível nacional, conta que o convite para ser fotografado foi feito durante uma entrevista. Diretor da série documental ‘Boate Kiss – a tragédia de Santa Maria’, da Globo Play, o jornalista voltou à cidade após a anulação do julgamento para ouvir os protagonistas do documentário. Entre eles, estava Gabriel, e a entrevista aconteceu no estúdio de Ricardo. Lá, Canellas conheceu o projeto e foi fotografado. “É inegável que, de certa forma, eu faço parte dessa história construída coletivamente. Me sinto como um tijolinho na construção do imaginário iconográfico da trajetória da Kiss”, pondera.

Para o jornalista, as palavras-chave da história da Kiss são memória e justiça. “A construção da memória se contrapõe àquilo que é quase uma doença brasileira, que é a ideia de que esquecer faz superar”, destaca. Ele recorda exemplos como a ditadura militar no Brasil, em que a elite política e econômica apostou no esquecimento como forma de superação. “A memória é importante porque combate o esquecimento, e o esquecimento é primo e irmão da injustiça.

Quando você insiste na preservação da memória, está apontando para a possibilidade de justiça, que também é não repetir os erros. E você não repete os erros quando lembra deles e por que aconteceram”, reflete Canellas.

Segundo Gabriel, este tipo de projeto tem papel importante no registro da história e na consolidação da memória. “A fotografia é uma forma de narrar e pode contribuir muito para revelar essa importância. O esquecimento é perigoso”, pontua. Para Maike, a fotografia em forma de lembrança também é uma forma de prevenção. Ele destaca que este é um ponto-chave, repetido pelas pessoas envolvidas na tragédia. “Projetos como esse são importantes para que a tragédia não se repita”, enfatiza.

Próximos passos

Até o momento, já foram feitas cerca de 47 fotografias. A meta inicial, segundo Ricardo, é chegar a 50. O acervo será doado à AVTSM e será destinado à composição de um mural no futuro memorial.

Produção de conhecimento na UFSM

Além do “Fotografar para lembrar”, na UFSM já foram desenvolvidos outros projetos e pesquisas que buscam construir saberes acerca da tragédia. Confira alguns deles:

  • a construção de um dispositivo interativo virtual que remonta o interior da boate antes do incêndio e que foi utilizado no julgamento, em dezembro de 2021;
  • a criação do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (CIAVA) que, durante a pandemia, utilizou os conhecimentos provenientes da experiência da tragédia para o tratamento de sobreviventes da covid-19;
  • Quando a dor inspira conhecimento: diversos estudos e pesquisas provenientes de reflexões sobre a tragédia;
  • Pesquisa sobre a relação entre personalidade, psicopatologia e resiliência nos sobreviventes da Kiss;
  • Avanços na prevenção e proteção contra incêndios;
  • Reflexões sobre a construção de memória;