Em 1982, no ocaso do regime militar inaugurado em 1964, tive minha primeira experiência eleitoral. Com mais uns poucos representantes do então recém fundado Partido dos Trabalhadores fui às ruas defender democracia e justiça social. A nossa votação foi muito fraca naquele ano, mas semeamos as sementes de futuras vitórias.
Lembro até hoje que no contato com os eleitores a maior parte nos olhava entre preocupada e incrédula quando pregávamos o fim da ditatura militar no país. É que poucos se atreviam a falar abertamente que tínhamos uma ditadura militar no Brasil. Nós, um bando de guris iniciando na militância partidária, estávamos fazendo o que a maior parte dos políticos não fazia por medo de retaliações: falar abertamente que estávamos sob o jugo militar há quase vinte anos. E muitos nos chamavam de comunistas… por pregar a democracia.
Anos mais tarde, em 1986 e 1987, ministrei aulas de filosofia no campus da PUC em Uruguaiana. Lembro bem de um aluno, funcionário da Polícia Federal. Era sabido por todos que o mesmo estava lá para verificar se estava sendo difundido algum conteúdo subversivo. Notem que estávamos há vários anos em pleno processo de redemocratização do país, impulsionado pela campanha das Diretas Já, que sacudiu o país em 1984. A democratização foi um processo lento e cheio de dificuldades.
A eleição indireta de Tancredo Neves, sua morte e a presidência de José Sarney não foram o desfecho esperado pelas multidões que foram às ruas no Diretas Já, mas significaram um avanço para um novo patamar. Em 1986 e 1987 veio a Constituinte, um espaço de debate e de formulação de uma ordem legal democrática, que resultou na Constituição de 1988, a mais avançada das nossas cartas constitucionais, fruto da mobilização de milhares de cidadãos e da pressão das organizações da sociedade civil.
O processo constituinte, todavia, não assinalou uma clara ruptura com o regime militar, como aconteceu em outros países. Aqui, a transição da ditadura à democracia foi feita sem o acerto de contas com o passado. Torturadores não foram presos, matadores continuaram nos seus postos, políticos, empresários, lideranças e meios de comunicação que apoiaram a ditadura não pagaram por seus atos. A Lei da Anistia de 1979 concedeu o perdão a todos os envolvidos em “crimes políticos”, colocando no mesmo nível os que sustentaram o golpe militar e os que reagiram.
A Lei da Anistia, na versão oficial, foi a melhor solução possível e está em acordo com a vocação pacífica do nosso povo. Uma versão cômoda para os que se beneficiaram com a regime autoritário. O reverso da medalha foi a deseducação de parcela importante dos cidadãos. Muita gente não entendeu a gravidade do golpe deflagrado em 1964, não registrou como “pecado” o crime principal (o golpe) e os crimes derivados (assassinatos, torturas, perseguições).
Um golpe de estado é algo gravíssimo, que deveria arrepiar qualquer pessoa. Não foi isso que aconteceu. As pesquisas de opinião indicam ao longo dos últimos trinta anos que uma parcela razoável da população brasileira diz aceitar, em certas circunstâncias, o regime autoritário ou se mostra indiferente. São cidadãos que aceitam com naturalidade que políticos, militares e lideranças envolvidos com a ditadura continuem a ocupar postos importantes até hoje. E não poucos desses cidadãos se dizem revoltados com a corrupção…. E até acreditam que uma nova ditadura possa resolver o problema da corrupção…
É, temos muito a fazer até consolidar a democracia. Sem cultura democrática compartilhada pela ampla maioria do povo não há democracia forte e estável.