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Pedagogia

Na última Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), o líder indígena e escritor Aílton Krenak proferiu a seguinte frase: “A pandemia não vem pra ensinar nada. A pandemia vem pra devastar as nossas vidas. Eu não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina. (…) Essa ideia, eu não tenho nenhuma simpatia com ela. Se for pra sofrer, eu não quero aprender nada”. Preciso dizer que não só concordo, como acho que ninguém expressou tão bem como a pandemia de Covid-19 tem sido interpretada.

Após um período de completa incerteza, quando nossa vida foi virada ao avesso por esse acontecimento, surgiram diversos gurus e especialistas falando sobre os “aprendizados que a pandemia trouxe”. Como se houvesse alguma lição a ser aprendida na morte, pobreza, desemprego e incerteza do amanhã. Mais do que isso, a tentativa de enxergar esse fato histórico sob esse viés esconde por trás uma certa culpa cristã que explico a seguir.

Observamos nossa vida sob a ótica de que as coisas são etapas, processos e ciclos que se encerram. Diante deles, das nossas escolhas e personagens que se apresentam, encontramos nossos dilemas: afeto, amor, solidariedade, confiança, vulnerabilidade, tristeza, decepção. Tudo isso é uma reação diante do que acontece de bom e de ruim em nossas vidas. Quando estamos felizes, buscamos agarrar aquela alegria efêmera, sabendo que ela é preciosa, finita e se esvai num piscar de olhar. A partir das tristezas e sofrimentos, buscamos encontrar lições, ensinamentos, compreensões do que aconteceu. Se eu tivesse que escolher, não gostaria de sofrer para entender algo.

Grande parte da minha vida escolar sofri com as notas ruins decorrentes de uma educação que vê o aluno como uma matrícula, além, é claro, de toda as coisas que um adolescente vive. Sofri bullying, me senti deslocado, passei anos decorando fórmulas e demais informações que hoje nem vejo pela frente. Decorei, passei de ano raspando, mas saí da escola sem noção alguma do que me esperava pela frente. Pior do que isso: saí do colégio sem o menor gosto por aprender e estudar.
Passei anos acreditando e concordando que tudo que vivi serviu de aprendizado para quem sou hoje. Talvez fosse melhor não ter passado por coisas que me afligem até hoje e me fizeram tão mal, como o próprio bullying. Aprendemos desde pequeno que a jornada do herói é feita de questionamentos, contratempos, arrependimentos, tristezas, perdas. E que, no fim, tudo dá certo. Porém, e quando tudo isso destrói o que somos por dentro, o que sobra? Essas coisas estão vivas em mim, me machucaram e tornaram-se feridas sob a pele. Moldaram meu comportamento, a forma que me relaciono com as pessoas, criaram distorções na imagem que tenho de mim mesmo. Apenas recentemente fui entender isso.

Por isso que vejo tanta razão nas palavras de Krenak, autor de um livro sensacional que discute de forma conjuntural o que o Brasil e o mundo vivem hoje em dia. A pandemia não é uma lição para a humanidade. Fosse ela, os ricos não teriam concentrado mais riqueza. Estaríamos discutindo jornadas de trabalho menores, medidas de proteção e seguridade social, diminuição das desigualdades. Estaríamos repensando o papel de raça humana em um mundo com recursos finitos.

Não há nada pedagógico no sofrimento, não vejo sentido em eleger pessoas e relacionamentos anteriores como lições. Pessoas, experiências e relacionamentos são coisas a serem vividas, desfrutadas, amadas. Não vejo como tirar algo de bom diante de situações abusivas, destrutivas. Precisamos de paz, amor, solidariedade. Precisamos de tempo para amar, para viver com nossas famílias, amigos e amores. Não precisamos viver em um mundo em destruição carregando sentimentos e dores como a ansiedade, a depressão, o bullying e transtornos causados justamente pelo que há de pior no capitalismo. Não tenho simpatia pela dor como um aprendizado ou gostaria de romantizar o sofrimento que sentimos. Salve-me dessa pedagogia.