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Palavra

Eu não estive ausente. Esta coluna esteve. Tu estiveste. Diz-me, Palavra, diz-me por onde andavam tuas letras, tuas sílabas, teus sentidos. Ou teria sido tua ausência motivada pela falta dos teus sentidos? Que ventos te levaram? Teriam sido os ventos que assoviam nas encruzilhadas de Santa Maria? Ou será que te perdeste no meio da fumaça do veneno inodoro ou na parede em brasa? Se foi assim, como ainda tu apareces, como se houvesse sentido em ti? Se passaste pela ausência, pelo silêncio e por tudo, por que apareces agora, de repente? Por que te apresentas assim, em sílabas rotas, com mais hiatos que ditongos? Já foste mais sonora. Já que vieste, confesso: quero-te sim. Já te quis mais. Quero-te ainda, mas te quero viva. Quero-te com significado, com sentido. Ensina-me a ver sentido. Já que vieste eu te quero acesa, mas  sem pegar fogo. Quero-te com o frescor da bruma, mas não de qualquer bruma. Quero-te com o frescor da maresia, a mesma à qual emprestas tua luz nos dias de sol, e que te é devolvida nas noites de lua.
Diz-me, Palavra, diz-me por quê? Permita-me que eu te faça três pedidos. Se um dia eu quiser me expressar por meio da arte musical, e eu tiver que usar show pirotécnico (faíscas, fagulhas, fogo) para tentar convencer que sou artista, permita-me que eu não seja digno da arte. Se um dia eu for (i)responsável por uma casa de entretenimento social, mantiver extintores de incêndio falsificados, não cuidar dos mínimos requisitos de segurança, permita-me que eu não seja digno de mim. Se um dia eu for este (i)responsável e um dos proprietários, e na manhã seguinte ao sinistro assassino eu postar numa rede social da internet que “apesar do ocorrido, eu estou bem”, permita-me que eu não seja digno de nada.
Vivemos num tempo em que se busca surpreender pelo caminho mais fácil. É muito fácil tentar surpreender com fogos. Difícil é traduzir o fogo em notas musicais, seja qual for o estilo da música. Difícil é cantar o fogo em versos que traduzam calor e magia. Difícil é dançar o fogo, representar faísca, labaredas, brasa, transformar tudo isso em expressão artística. Mas vivemos num tempo do mais fácil. Um tempo em que chamam de arte um pedaço de pau atirado no chão ou uma cadeira pendurada no teto. Claro que os jovens vão a uma balada mais pelo convívio, pela interação social, pela diversão, pela curtição do todo. Mas quando há um show programado, cabe a quem se julga artista do palco exercer seu poder de encantar e surpreender com gosto seletivo, ciente das fronteiras entre arte e exibição apelativa (ou incompetente).
Esta coluna esteve ausente. Eu não estive. Estive ocupado procurando teus cacos, Palavra, se é que restaram teus cacos. Enquanto procurava, tive tempo de refletir sobre nós. Concluí que te amo, mas às vezes te odeio. Fiquei confuso, e resolvi refletir mais. Descobri então que nunca fui indiferente contigo. Foi assim que aprendi que o ódio faz parte do amor, e o que não faz parte é a indiferença. Amo a parte de ti que encontrei aos pedaços, juntei, e colei até onde pude. A outra parte de ti não vou procurar. Quero que pratiques mais o exercício do autoencontro. Mas não faças isso por eu querer. Quero que desejes a ti mesma, que encontres teus pedaços, monte-os como num jogo de quebra-cabeças, e depois costure, cicatrize, letra por letra, sílaba por sílaba, até formar sentido. Quando estiveres pronta, não tens que me procurar. Tua liberdade é a minha liberdade. Não vou te esperar, porque te respeito. Caso queiras me achar num futuro qualquer, nem eu sei se saberei como será minha imagem daqui a um tempo. Só saberei se um dia eu conseguir me ver de novo e, por enquanto, só consigo me ver no espelho dos teus olhos, Palavra.

Agradeço ao Riovale Jornal e a todas as pessoas que me honraram com a leitura dos meus textos nesta coluna. A vida é um ciclo feito de ciclos. Quem sabe num desses, algum dia, a gente se encontra.                                                                                     

Marion