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Os outros

Marina Colasanti conta que, quando trabalhava para o Caderno B do Jornal do Brasil, foi incumbida de receber a pessoa e as crônicas de Clarice Lispector. Os textos, no entanto, lhe eram entregues por um encarregado e vinham sempre cheios de recomendações. Uma delas é que avisasse aos revisores para não mexer na pontuação. “Minha pontuação é a minha respiração”, avisava.
Gramático algum concordaria com ela, evidentemente, pois é sabido que na Língua Portuguesa a pontuação responde a parâmetros sintáticos e não à capacidade respiratória do leitor ou do autor.
Ora, Clarice era muito bem alfabetizada e utilizava com tranquilidade a língua padrão. Mas mesmo nesta há formas de dizer, estilos, caminhos possíveis, e por eles passeava outra Clarice, a personagem criada para falar literariamente. Corromper suas formas significaria não deixar que respirasse, matá-la.


Ninguém está no texto como na fotografia. Mesmo na fotografia já haveria uma produção. O texto, por mais autêntico que seja, leva sempre em consideração a quem se destina, o tempo em que vai ser entregue, o que é permitido ser naquele espaço em que será lido; infinitas conjecturas a cargo daquele encarregado que dita a pena.
Hoje, por exemplo, estou com uma gastroenterite que me derrubou, consumiu minha vontade de fazer qualquer coisa. Mas estou aqui, de carona nessa espécie de espírito que um pouco ri da minha dor e outro pouco trabalha.


Quando reuni forças para chegar ao computador, havia várias telas escuras repletas de linguagem de programação e uma recomendação: “não mexer”. Minha filha teve o PC furtado e estamos disputando a tapa este velho Samsung. Fiquei olhando aqueles sinais todos, ou respirações, e imaginando o que poderiam significar. Não entendi nada, é claro. Só pude perceber – e posso estar enganado – é que se trata de uma linguagem em que primeiro se fala com o sistema e depois e através dele com os outros. Como se eu dissesse lá no começo: “Oh, Língua, hoje vais soar casual, vais primeiro acionar a emoção, depois descrever o assunto, então… etc”. Uma musa seca e operacional.


Clarice, como a descrevem alguns não muito íntimos, era uma pessoa enigmática, cujo acesso pessoal era mediado pelo próprio enigma. Este que recebia as visitas, servia o chá e demorava ao bebê-lo, contemplando lá de dentro as suas pobres histórias, para depois talvez roubá-las.