O trabalho, quase sempre, é o passaporte para nosso ingresso na vida adulta. Não raro, ele nos acompanha até a morte. Pois é sobre os sentidos que rodeiam, especificamente, o trabalho subordinado que quero refletir hoje, no contexto da pandemia do coronavírus e tecendo um paralelo com as MPVs (Medidas Provisórias) 927 e 936.
No dia 1º de abril – data que, aliás, condiz com o “espírito” da nova legislação – o atual presidente da República “presenteou” a classe trabalhadora com as referidas medidas que, em linhas gerais, autorizam redução de salário e jornada e instituem o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda, entre outras questões jurídicas trabalhistas. À primeira vista, algo bom…
A visibilidade que o trabalho ganhou durante a pandemia determina que a atividade humana é central e que não há economia sem trabalho. No entanto, esta centralidade se perde nas linhas propositalmente mal traçadas das medidas provisórias que, aqui, são objeto de análise. Tais regras autorizam piorar ainda mais as condições de trabalho, potencializando riscos e contribuindo para o quadro cruel de mortes e adoecimentos entre os trabalhadores da saúde, para não me estender nos exemplos. Estes profissionais são obrigados ao trabalho excessivo, jornadas que ultrapassam 12 horas e sem recebimento de horas extras, sendo possível compensar, no prazo de 18 meses, por folgas.
Interessa observar que as MPVs 927 e 936 se apresentam como “medidas de proteção ao emprego e renda”, mas o que se vê é o aval do Estado para diminuir renda e retirar direitos. Ficamos num caso: quem recebe um salário de R$ 1.200,00 e sofrer redução de 70%, terá sua renda diminuída para R$ 1.091,50, sendo o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda de R$ 731,50, e a empresa pagará R$ 360,00. Desta forma, a perda bruta acumulada em 30 dias será de R$ 108,50.
Ao editar as Medidas Provisórias, o governo brasileiro escancara quem ele protege: o capital e o lucro. Ao dispensar a participação dos sindicatos dos trabalhadores em todo processo, suplantando, inclusive, a Constituição Federal, cujo texto diz imperar a necessidade de negociação coletiva, vemos o esvaziamento de sentidos para àquilo que entendemos como trabalho. Às trabalhadoras e trabalhadores desesperados pelo medo do desemprego, resta apenas o “sim”, o aceite de qualquer “coisa” para se manter empregado, ou seja, tal ato é compatível ao nulo poder de negociação individual.
Cabe aos sindicatos dos trabalhadores não reconhecer nenhuma presunção de expressão livre e consciente de vontade nos acordos individuais realizados pela empresa, posto que todas as mudanças, com base no artigo 7 da Constituição Federal e Convenções da OIT, devem ser deliberadas coletivamente. À primeira vista, como disse há pouco, parecem boas as Medidas Provisórias 927 e 936/20, mas elas aniquilam o valor do trabalho humano, afastam a tão almejada segurança jurídica, e são incompatíveis com os valores de uma sociedade fraterna e que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Aliás, nada fora de propósito, se olharmos a luz dos ideais presidenciais…
A saída? Embora nos pareça difícil resgatar o sentido de respeito e valorização do trabalho humano, a reflexão individual sobre o que realmente importa – se é mais a vida ou o lucro – é uma atitude responsável e um excelente ponto de partida. Outro passo decisivo é a mobilização coletiva de seres humanos comprometidos, já que o objetivo do trabalho é – tão só – garantir dignidade para a humanidade.
Lia Luciana Jost – Advogada