Na cidade de Florença, na Itália, um enorme bloco de mármore de carrara ficou exposto ao tempo por 25 anos no final do século XV. Na época, grandes mestres da escultura haviam recebido proposta para esculpir aquele mármore. Todos rejeitaram por razões diversas, mas o real motivo pode ter sido pelo difícil manuseio da enorme pedra. Então propuseram ao jovem artista renascentista Michelangelo Buonarotti, então com 26 anos de idade, criar ali uma obra de arte. Conta a história que durante três meses Michelangelo ia ao local onde estava o bloco de mármore e durante horas ficava lá sentado, apenas olhando o enorme bloco. Um observador, não entendendo aquilo, lhe perguntou: “Você vem e fica horas parado aqui olhando este bloco de pedra. O que está fazendo?” Então Michelangelo simplesmente lhe respondeu: “Trabalhando”. Era no ano 1501. Três anos depois ele havia transformado aquela pedra em uma das mais importantes e consagradas obras de arte da história humana: a escultura Davi (ou David).
A escultura do personagem bíblico Davi tem 5,17 metros de altura, e reproduz o realismo anatômico com uma maestria que se aproxima da perfeição. Antes disso Donatelo e Verrochio foram dois artistas que já haviam retratado Davi, mas no momento após a batalha contra Golias, e não no momento imediatamente anterior à ela, como fez Michelangelo. Utilizando somente aquele único bloco de mármore, Michelangelo esculpiu a imagem de Davi se preparando para enfrentar Golias, que todos julgavam ser impossível derrotar. A imagem mostra Davi com músculos contraídos, tendões do pescoço tensos, testa franzida, veias das mãos salientes, e fúria nos olhos. O olhar voltado para o lado permite ao espectador apreciar o detalhismo anatômico.
O que teria feito Michelangelo esculpir a imagem de Davi antes da batalha e não no calor do embate, ou já vitorioso? Penso que a genialidade de Michelangelo quis expressar que qualquer vitória começa antes da batalha, e isso pode ser estendido a qualquer segmento de confronto. Começa no preparo, no treino, na mente, na estratégia. Pergunto-me se Michelangelo teria feito essa obra tão grandiosa se não fosse Leonardo da Vinci seu maior concorrente na época. Há pouco tempo escrevi nesta coluna que concorrer com grandes é para grandes. Concordo que qualquer um pode se tornar grande, mas não sem preparo. E preparo não cai do céu. No caso de Davi o preparo era invisível aos olhos. Assim como Davi encontrou dentro de si inspiração e força para enfrentar o gigante Golias, Michelangelo costumava buscar dentro de si motivação poética para seus trabalhos. Ele dizia que não esculpia o mármore, mas “libertava os seres que estavam aprisionados no interior da rocha”. Engana-se quem pensa que inspiração poética é tudo. É preciso domínio técnico. No caso da escultura Davi, o mármore era enorme, mas era muito fino. Esta circunstância impunha dificuldade técnica e necessidade de precisão, pois qualquer erro poderia comprometer toda a obra. Ainda, não bastava que o trabalho ficasse bom. Depois de pronto era preciso transportar, sem danificá-lo, ao lugar onde ficaria exposto, e estamos falando de uma estátua de mármore de 5 metros, no ano 1504.
Quando vemos a estátua Davi de Michelangelo, precisamos ver além das aparências. Precisamos ver que um jovem pastor, aparentemente inofensivo (se visto de costas, pela suavidade dos contornos), pode se transformar num grande guerreiro (se visto de frente, pela expressão de fúria na face).
Quando vemos a estátua Davi de Michelangelo precisamos nos perguntar, numa linguagem figurada, o que faríamos diante de um bloco de mármore de mais de 5 metros, e fino. Trabalharíamos nele com afinco, mesmo que para isso precisássemos nos dedicar por 3 anos? E se soubéssemos que aquilo poderia ser um registro eterno da nossa passagem no mundo? Trabalharíamos nele mesmo sabendo que, depois de pronto, aquela enorme pedra esculpida teria que ser transportada sem quebrar? Você não precisa responder para mim, mas precisa responder para você mesmo. Você pode chamar de “mármore” o que quiser, e ser “Davi” nos momentos que quiser. Dentro de nós dorme um pastor e um guerreiro. Sabedoria é acordar cada um deles na hora certa.