Algo que se desenha cada vez mais frequente na atualidade, em se tratando de desentendimentos nada extraordinários entre duas ou mais pessoas, é a protelação do bom senso em virtude da lei: “Não discutirei isso com você. Aguarde a ligação de meu advogado”. Tal postura faz supor a debilidade das relações humanas.
Ora, qualquer jurista reclamaria, e com razão, que a lei subscreve o bom senso. Contudo, onde está a velha e boa “lei” consuetudinária, aquela das relações sedimentadas nos bons costumes, na maneira convencional do agir ponderado e/ou sensato ante circunstâncias que envolvem obrigações de um indivíduo para com o outro?
A situação comum hoje é aquela em que o juiz propõe em fórum essa diligência, no famoso “acordo” que é submetido à apreciação das partes antes mesmo de tramitar a jurisdição específica para o caso. Isso é no mínimo desestimulante, pois pressupõe o desuso da autonomia das partes afetadas, no quesito entendimento e interesse recíprocos, já que essas (ou mais comumente uma das partes) delegam o diálogo e o ajuste bilateral ao judiciário.
Numa análise filosófica, essa maneira de agir coloca-se como um problema, senão vejamos: (a) o indivíduo por natureza tem de reconhecer a si enquanto sujeito das relações interpessoais; todavia, (b) o indivíduo prefere abdicar desse reconhecimento e perceber a si enquanto objeto jurídico (um bem juridicamente protegido) – não que não o seja, ou que isso não corresponda a um direito seu, a propósito, é de todos. Contudo, o problema está em fazer disso a prerrogativa de sua existência no universo das relações humanas.
Em outras palavras, o ato de transferir a maior parte de sua integridade relacional-social ao aparato instrumental jurídico, fazendo deste o seu imperativo categórico, acaba por formalizar sua conduta individual dentro dos limites desse aparato. Isso culmina na reformulação de sua condição no mundo: indivíduo carecedor de si, reduzido quase que por inteiro à esfera da litigiosidade.
Em minha opinião, se a maioria dos desentendimentos ordinários e/ou corriqueiros, seja nas ambiências do trabalho, da escola, do trânsito, da vida em condomínio, das relações amorosas, etc; continuar sendo transformada em questão de dependência judicial, haverá o desgaste do próprio judiciário, pois não há judiciário no mundo que de conta dessa demanda (ademais, não está implicada aqui a cumplicidade individual no retardo dos processos judiciais, que se acumulam aos montes?). Haverá, outrossim, o desgaste do próprio homem nos ambientes relacionais de vida comunitária – aliás, verdade seja dita, a própria expressão “comunidade” não passará de um semblante, uma devoção fingida.