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“O deslocamento até a Kiss foram os cinco minutos mais demorados da minha vida”

Fotos: Divulgação/RJ
Doutor Dornelles: “A maior lição que tiramos de tudo é a prevenção!”

Na edição do Riovale Jornal do dia 5, tive a oportunidade de realizar uma entrevista exclusiva que abordava o livro da escritora Daniela Arbex Todo dia a mesma noite – A história não contada da Boate Kiss. Nas páginas a emoção na forma pura, relatos impactantes de uma tragédia que marcou todo o Brasil e que deixou em lágrimas a cidade de Santa Maria e, assim, o Rio Grande do Sul. Foram 242 vítimas que perderam as vidas em meio ao incêndio ocorrido em uma noite que era para ser de festa, 27 de janeiro de 2013. Anos depois, as lembranças ainda trazem dor, mas o que fica é um apelo para que tal acontecimento nunca mais se repita. Que fique a lição de mais amor, por favor! Mais atenção, sim!


A matéria, com a temática da obra de Daniela, me fez seguir adiante com mais uma reportagem do Caso Kiss e alguns relatos ainda sobre o livro que, para mim, também não será esquecido. Hoje, trago como entrevistado o médico Carlos Fernando Drummond Dornelles, 43 anos, natural de São Sepé. No livro de Daniela Arbex, o primeiro capítulo já traz no título o que o profissional enfrentou ao se deparar com a tragédia.


“É guerra!”, diz na página 13 da obra. Na ocasião, Dornelles cobria as férias de um colega na Unidade de Suporte Avançada (USA 24) do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Ao entregar o plantão naquela noite, fora do normal pela tranquilidade, não imaginava o caos que enfrentaria na madrugada. “Por onde começo, por onde começo?”, perguntava Dornelles a si mesmo, em busca de equilíbrio (página 18). Dornelles tinha certeza de que aquela madrugada de domingo, marcada pelo barulho ensurdecedor das sirenes, mudaria para sempre a sua vida, a história da cidade e, quem sabe, a do País (página 21). E, sim, mudou e deixou marcas que dificilmente serão apagadas.


Formado pela Ulbra Canoas em 2007, trabalhou como oficial médico temporário no Exército Brasileiro, com participação em Missão de Paz no pós-terremoto do Haiti em 2010. “Atuei como médico intervencionista do Samu de Santa Maria entre maio de 2011 e março de 2013. Participei no atendimento das vítimas na cena e no gerenciamento de crise na tragédia da Boate Kiss. Fiz a especialidade de Medicina de Emergência no Hospital de Pronto Socorro (HPS) de Porto Alegre. Atualmente, faço a rotina da sala vermelha da emergência do Hospital Santa Cruz, em Santa Cruz do Sul, desde março de 2016”, contou.


O médico relatou os momentos da tragédia que fez surgir uma cortina de lágrimas no Rio Grande do Sul. “Fui acionado por volta das 3h32 da madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 pelo colega médico que estava no plantão da UTI móvel do Samu, doutor Pedro Copetti, informando de que havia um incêndio na Boate Kiss e que haviam muitas pessoas feridas. O mesmo estava pedindo auxílio para fazer os atendimentos. Rapidamente, me dirigi para o local para ajudar”, lembrou.
“O deslocamento até a Kiss foi via táxi e foram os cinco minutos mais demorados da minha vida, pois queria chegar rapidamente para ajudar”, relatou o médico. “No local, me deparei com uma situação caótica, com muitas pessoas feridas, muita gente ajudando, bombeiros tentando conter as chamas e ao mesmo tempo resgatar as vítimas. Muitos veículos obstruindo a rua. Fui direto para uma ambulância do Samu, onde ajudei o Pedro a intubar um paciente grave. Posteriormente, segui atendendo todas as vítimas que encontrava no local e as direcionava para as ambulâncias que levavam até hospitais e unidades de pronto-atendimento”, explicou Dornelles.


A trajetória de vida do profissional de saúde é marcada por ocorrências de urgência no atendimento. Trabalhou, inclusive, no Haiti, ano de 2010. “O Haiti foi uma missão diferente. O terremoto já havia ocorrido e o cenário era outro, pois atendíamos pacientes com ferimentos infectados, casos de malária e vários com patologias psiquiátricas. Atuei no hospital de campanha da Força Aérea Brasileira e em diversas missões militares. Também era responsável por cuidar da saúde dos militares do Exército Brasileiro”, ressaltou.


O cenário que encontrou na Kiss foi absolutamente triste e muito forte, explicou Dornelles. “Muitos jovens feridos e pedindo socorro. Alguns, infelizmente, já encontrei sem vida ou nada pude fazer para ajudá-los, pois não tínhamos todos equipamentos necessários naquela situação caótica. Fizemos um esforço coletivo para atender e transferir de imediato o maior número de pessoas para hospitais e unidades de pronto-atendimento”, relembra com emoção.


Na tragédia em Santa Maria, perdemos o santa-cruzense Matheus Rafael Raschen. No intuito de salvar vidas ele acabou falecendo. Foi um verdadeiro herói. “Não recordo se atendi o Matheus no local da tragédia. Como responsável pelo gerenciamento de crise, recebi o nome dele e as condições clínicas em que se encontrava, inclusive com queimaduras externas e pulmonares. Como tinha queimaduras, ele entrou na lista de prioridades de transferência para o centro de queimados em Porto Alegre, pois Santa Maria não possui condições de tratar esse tipo de paciente. Como sabemos que um paciente queimado piora rapidamente em poucas horas, priorizamos a transferência dele e de outros com condições semelhantes via transporte por aeronaves da Força Aérea Brasileira para Porto Alegre. O Matheus foi para o HPS (Centro de Queimados), onde sabíamos que teria o atendimento necessário para sua condição patológica”, relatou.


Dornelles também fez uma ressalva. “Gostaria de registrar que através do ex-presidente da associação de vítimas, senhor Sérgio Silva, tive a oportunidade e a honra de conhecer pessoalmente o senhor Nestor e sua querida esposa Núria. Foi um encontro marcante, repleto de muita emoção e respeito. Foi o início de uma grande amizade que cultivamos com o maior carinho. O Matheus foi um verdadeiro herói! Salvou muitas vidas, mesmo sabendo que estava colocando sua vida em risco. Merece esse reconhecimento”, destacou.


A tragédia da Kiss nunca saiu e nunca sairá das minhas memórias, disse Dornelles. “Até hoje sofro muito ao lembrar. A maior lição é dar valor à vida, à família, à saúde e aos bons momentos que vivemos. Aproveitem tudo, porque isso passa e, às vezes, infelizmente, com muita rapidez. A Daniela Arbex é uma escritora incrível. Tem um coração do tamanho do mundo! Soube compreender e descrever com todo respeito tudo aquilo que ocorreu na tragédia. Um livro que todas as pessoas deveriam ler e com isso refletir sobre seu dia a dia. Ficamos grandes amigos e até hoje mantemos contato”, pontuou.


Sobre a maior lição, Dornelles destacou a prevenção. “Tragédias semelhantes nunca mais deveriam ocorrer. Tantas vidas perdidas diante de uma irresponsabilidade e ganância financeira. A fiscalização mudou muito depois do ocorrido, mas nosso País ainda está longe de ser sério e confiável no quesito prevenção/fiscalização. Talvez um dia isso mude para melhor, mas depende muito de as autoridades levarem mais a sério seus atributos”, finalizou o médico.

“Uma obra feita com a alma”

Daniela Arbex conseguiu no livro traduzir de forma ímpar o que foi a tragédia da Boate Kiss. Ela fez uma obra com a alma. Ela não quis somente descrever o que havia acontecido na fatídica noite de 27 de janeiro de 2013. Ela mostra o impacto na vida das famílias das vítimas e nos sobreviventes. Fez uma obra com muito carinho e dedicação, transformando a obra num grito de alerta para que nunca mais se repita uma tragédia como a da Kiss.

Nestor Raschen: “A obra é um grito de alerta para que
nunca mais se repita uma tragédia como a da Kiss”


O texto de Daniela é carregado de profunda compreensão da alma humana. Tanto é que foi usado na sentença pelo juiz do Tribunal do Júri quando a proferiu a cada um dos réus. Tivemos o privilégio de conhecer e ter uma boa conversa com a Daniela Arbex em 2018 quando proferiu palestra sobre o livro na Unisc. No dia seguinte à palestra, levamos Daniela para Santa Maria para o encontro com as pessoas que havia entrevistado e realizar palestra na Feira do Livro.
Daniela é daquelas jornalistas com garra, que compreende que o seu texto tem a força de fazer justiça dando voz e vez aos que clamam pela causa no mundo em que vivemos, ela tenta aplacar a dor das pessoas.
Relato de Nestor Raschen, pai do jovem Matheus Rafael Raschen, uma das vítimas da Kiss.

Matheus Raschen foi um verdadeiro herói na tentativa de salvar outras vidas durante a tragédia