Hoje andei sobre uma chuva recém caída. Vi as nuvens mais claras que anunciavam frio. Esse inverno que parece tão igual chega para escrever uma história diferente das outras e sobre a qual muito ainda será lembrado. A sensação quase física dessa história que acontece distante de qualquer ilusão de controle. A consciência gelada dos fatos que castigam os olhos, dos quais um tanto nos protegemos e outro tanto enfrentamos. Por cima da máscara e com os óculos um pouco embaciados vejo as casas da vizinhança, todas muito confortáveis. Algumas para alugar, é verdade. Não posso ir longe, mas saboreio cada metro da rua vazia.
Certas chaminés soltam fumaça, indicam a vida interna nas tocas humanas. Não muito longe daqui, o Centro tenta levar algo próximo a uma vida normal, presencial. Um pouco mais adiante, um grande contingente de pessoas segue trabalhando ou buscando o que fazer para não morrer de fome, não sucumbir ao desalento e ao clima agora adverso. Tudo recoberto por uma película gosmenta de medo e apreensão.
Vemos de longe o país, o estado, a municipalidade. O Estado, enfim, como um estranho planeta que hora se afasta, hora se aproxima. Ele parece estar em guerra, como sugere a descontinuidade dos seus efeitos sobre nós e as múltiplas explosões em sua superfície. Na esfera superior, um mandatário desacreditado toma medidas estapafúrdias com as quais pretende acima de tudo a preservação de seu governo que dia a dia se decompõe em múltiplas desonestidades intelectuais e ao final se desnuda: o esqueleto macabro de um poder que, deslegitimado, ameaça aos seus súditos exercê-lo pelo uso da violência.
Abaixo dele, seus vassalos buscam ressuscitar o antigo espírito de uma federação que, mesmo prescrita constitucionalmente, pouco se exerceu de fato. Mesmo assim se desvassalaram, salvaram milhares de vidas contrariando a vontade do poder central, a despeito das avassaladoras condições orçamentárias. Foram seguidos pelos municípios, os pontos mais próximos de nós, que têm a missão de nos olhar nos olhos.
As pestes e as guerras são velhas conhecidas e costumam ser um catalisador histórico, erodindo velhos regimes e oportunizando novas situações. Guardadas as proporções, esta pandemia também não deixará intacto o novelo histórico. Em que pesem os bem intencionados discursos de união diante do inimigo invisível, o que se vê é o recrudescimento da luta. Pois como é da natureza das crises essa também requereu tomadas de decisão em momentos cruciais, onde ficaram expostas as entranhas daqueles a quem coube tal poder. E nem tudo o que se viu foi aceitável.
Sob as chaminés da minha rua algo é urdido, casa a casa, quase até o infinito. Em suas rotinas alteradas. No ecossistema econômico o que pendia caiu, o que hesitava partiu. Novos indivíduos bolinam a História, fermentam o que talvez seja um começo.