“Isto é o meu corpo que será entregue por vós”, “comei e bebei” diz o ritual cristão, onde o corpo em forma de pão e o sangue em forma de vinho são ingeridos em sinal de comunhão. Hoje resumido a uma lâmina de pão e um molhar de lábios no vinho o cerimonial é um ato simbólico, sem qualquer sentido nutricional.
O mesmo não se pode dizer do costume dos masságetas, tribos que viviam entre o mar Cáspio e o Aral, descritos por Heródoto (sec. V a.C.), que sacrificavam aqueles que já haviam vivido o suficiente e os cozinhavam para servir de alimento junto a outros animais sacrificiais. Apesar de ser possível vislumbrar algumas vantagens materiais de tal costume para a tribo, ser comido era uma honraria àqueles de boa vida, ao contrário dos que morriam por doença, que eram enterrados.
Em romances e filmes encontram-se situações limites em que os sobreviventes se veem no dilema de comer a carne de seus semelhantes mortos ou morrer. E comê-la é sempre uma passagem para o remorso e a insanidade. Nossa cultura definitivamente não aceita o canibalismo, até agora. Alguns rituais de caça procuram guardar uma relação de dignidade entre caça e caçador, buscando um indivíduo mais velho, expulso da manada, ou exaltando a valentia e a capacidade de luta da caça, cujas qualidades seriam absorvidas por quem a comesse. Após decretar a extinção dos grandes mamíferos, os homens inventaram a pecuária. Para atender às grandes populações humanas, essa pecuária se intensificou e bilhões de vidas animais foram reduzidas a um cubículo onde se nasce, engorda e morre industrialmente. Na crescente cultura do veganismo consumir qualquer tipo de carne ou derivado é inadmissível, pois submete outros seres dotados de consciência a uma servidão cruel.
À perda dos rituais e crenças que sustentavam o ato de matar e comer corresponde sua perda de significado. Comer um pedaço de carne, hoje, ou um pote de cereal tem o mesmo valor simbólico, é estoque que vira consumo e resíduo. Como que estamos já preparados para a inovação trazida pela indústria da alimentação, baseada em pesquisas com células-tronco.
O governo de Cingapura autorizou a americana Eat Just à produção e venda para consumo humano de carne artificial produzida a partir de células de frango, primeiramente para fabricação de nugetts. Muitos aspectos positivos são considerados, desde um menor impacto ambiental até a contemplação de muitas das reivindicações veganas.
Em breve, a espécie não passará de um detalhe do produto, um “terroir”. E restaurantes exóticos poderão servir, por que não, até a carne humana.
A mim nem caberá, espero, viver todas as consequências éticas ou simbólicas dessa novidade. Mas preferiria me unir aos outros animais no caldeirão dos masságetas que servir ao banquete dos vermes.