O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, pela Procuradoria Regional do Trabalho da 4ª Região, Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente – Coordinfância, tendo em vista pronunciamento realizado em evento de abertura da colheita do fumo no Município de Santa Cruz do Sul pelo senador eleito Luiz Carlos Heinze, em que este expressou ideia que traduz o senso comum de muitas pessoas, a de que trabalhar desde cedo seria algo positivo e de que a vedação do trabalho infantil seria algo negativo, vem expor o quanto segue:
No mundo todo, a preocupação com o combate ao trabalho infantil nas cadeias produtivas impulsiona ações de proteção à infância, tanto que o tema é parte da agenda 2030 de objetivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (da qual o Brasil, juntamente com todos os países desenvolvidos de expressão política internacional, faz parte).
A Constituição do nosso país estabelece, no seu art. 227, que a criança e o adolescente são prioridade absoluta, e que é proibido qualquer trabalho antes dos 14 anos, sendo que, entre os 14 e os 16 anos, o trabalho somente pode ocorrer na condição de aprendiz, ou seja, conciliando ensino e aprendizagem de uma profissão. Isso quer dizer que nenhuma pessoa deve trabalhar antes dos 14 anos, por expressa previsão da nossa Constituição, que não é um patamar aleatório, mas baseado em parâmetros internacionalmente convencionados e que levam em conta a duração da escolarização básica e o desenvolvimento físico e emocional do jovem.
Em razão desse compromisso firmado na Constituição é que devemos todos zelar pela salvaguarda de nossas crianças e adolescentes, e uma das formas de efetivar esse compromisso é lutando pela erradicação do trabalho infantil, que é o trabalho fora da idade permitida.
Ainda que seja comum ouvirmos que “não faz mal nenhum trabalhar, o trabalho ensina”, a verdade é que o trabalho para a criança e o adolescente pode, sim, fazer mal, e isso fica evidente quando verificamos os dados de acidentes: 22 mil crianças e adolescentes acidentados nos últimos 10 anos e 200 mortes. É que o organismo humano não está ainda totalmente desenvolvido nessa idade, e fica muito mais suscetível a adoecimento, sem contar que a falta de maturidade e experiência comprovadamente acarreta muito mais acidentes. A infância e a adolescência são o momento de aprender sim, mas no ambiente escolar e familiar, e não no trabalho. Também é bom lembrar que, quanto mais cedo se começa a trabalhar, mais prejudicada estará a formação educacional e a renda no futuro. Isso quer dizer que crianças que trabalham não serão, em geral, adultos com bons cargos e bons salários.
Importante lembrar, ainda, que o trabalho rural vem sendo constantemente aprimorado, com mecanização e informatização, de modo que o futuro requer profissionais qualificados, o que não combina com trabalho infantil.
Embora a conclusão que pode ser extraída do pronunciamento do Senhor Senador, no sentido de desconhecimento acerca dos aspectos da questão relacionada ao combate ao trabalho infantil, percebe-se que isso não se aplica ao setor fumageiro, o qual criou o programa “O futuro é agora”, em 1998, mais tarde nomeado “Crescer Legal”, bem como firmou Termo de Ajuste de Conduta perante o Ministério Público do Trabalho em 2008.
Não bastasse isso, duas das maiores empresas do setor, Souza Cruz e Philip Morris possuem programas de combate ao trabalho infantil em suas cadeias produtivas e buscam demonstrar ao mercado que estão comprometidas com esses valores. Estimular o descumprimento dessas medidas de combate ao trabalho infantil prejudica a imagem do produto brasileiro no exterior. Não se pode mais imaginar que uma ação localizada não tem impacto global. O mercado é global, assim como a informação que circula sobre as cadeias produtivas.
Não há justificativa para permitir que a infância seja roubada pelo trabalho, que seja negado o direito ao estudo, ao convívio familiar, ao esporte, ao brincar e, acima de tudo, de um futuro digno.
É preciso reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com o cumprimento de padrões mundiais de excelência, em que os direitos das crianças e adolescentes sejam respeitados. Afinal, com certeza os brasileiros querem ver seu país como modelo de boas práticas e não de atraso.
Ana Lucia Stumpf Gonzalez
Procuradora do MPT em Uruguaiana (RS)
Coordenadora regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância)