Em tempos de protestos, multidões nas ruas parecem ser apenas uma das expressões legítimas da democracia. Elas são uma importante forma de expressão da democracia, sem dúvida, mas há um outro lado: elas podem desafiar a democracia.
Sob o ângulo positivo, multidões nas ruas, em protesto ou em apoio a causas de interesse coletivo, reafirmam explicitamente o princípio fundamental da democracia: o povo é o “soberano”, o “dono” da política. As autoridades, as instituições e tudo o mais devem estar a serviço do dono. Quando o dono vai às ruas exigir mudanças, essa exigência tem um imenso peso.
Na história brasileira, são raros os momentos em que multidões com expressão nacional foram às ruas exigir mudanças políticas. Mobilizações regionais ou locais não são incomuns na nossa história, mas grandes manifestações nacionais são artigo raro. Tanto a Declaração da Independência quanto a Proclamação da República foram atos que não contaram com nenhuma participação popular ativa.
Uma multidão na rua que marcou (tristemente) a história foi a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que no dia 19 de março de 1964, às vésperas do Golpe Militar, reuniu em São Paulo de 500 a 800 mil pessoas, na sua maioria mulheres de classe média. Consequência: essa multidão ajudou a avalizar o regime militar.
Vinte anos depois, vários milhões de pessoas, nas capitais e médias cidades do país, foram às ruas exigir o retorno da democracia, no emocionante movimento das Diretas Já. Consequência: criou o ambiente para a vitória indireta de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985, e o retorno das eleições diretas em 1989.
Em 1992, as multidões voltaram às ruas para pedir o impeachment do Presidente Fernando Collor, que havia perdido a credibilidade política entre as elites políticas e econômicas, bem como na população em geral. Consequência: perda de mandato do então presidente.
Multidões voltaram às ruas em 2013 e 2015, notadamente de classe média. As mobilizações de 2013 acabaram por fortalecer as forças direitistas, que começaram a assumir uma identidade política mais clara ao longo do processo eleitoral de 2014 e vêm conseguindo imprimir sua marca nas mobilizações atuais contra a Presidente Dilma. De outro lado, movimentos sociais e sindicais também começam a ir para as ruas, em sentido diverso. No atual momento, a consequência visível é uma forte polarização política entre as forças de centro-esquerda (pró-governo) e de direita (anti-PT).
O lado obscuro das multidões é o seu potencial de desequilíbrio anti-democrático. Experiências históricas mostram que multidões não são apenas pessoas reunidas num mesmo lugar ao mesmo tempo. Multidões liberam cargas imensas de energia política, potencializando ações caracterizadas pelas paixões e não pela razão e pelo senso de limites.
A democracia convive bem com multidões impulsionadas por convicções democráticas, que vão às ruas exigir mudanças que aperfeiçoam a ordem estabelecida, mas é incompatível com aquelas movidas por impulsos destrutivos e por causas que põem em questão as próprias instituições democráticas.