No final dos anos 1990 e início dos anos 2000 circulava em Santa Cruz do Sul a revista Sala de Espera (editora Corpore, Porto Alegre), então uma revista exclusiva de temas médicos, mas numa linguagem de fácil entendimento. Fui convidado a escrever o editorial da edição número 14, de maio de 1999. ”Telemedicina em Trânsito de Milênio” era o título do texto. Na época muito pouco se falava em telemedicina, em países desenvolvidos já havia começado de forma discreta, mas ainda não no Brasil. Penso hoje que, se o Ministério da Saúde tivesse investido em tecnologia nesse sentido poderia ter resolvido, pelo menos em parte, a dificuldade da carência de médicos nas pequenas cidades ou locais remotos. Os poucos médicos que lá atuam estariam conectados a centros de excelência através de teleconferências e transmissão de imagens à distância por computadores. Entretanto, isso não dispensaria a boa formação médica. Nas palavras do professor Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, “a pior coisa da medicina é tecnologia de ponta nas mãos de médico ruim”.
Parece que o gosto pessoal da população por tecnologia está fazendo poeira às instituições governamentais. São cada vez mais disponíveis e usados aplicativos sobre saúde para celulares smartphones ou tablets. Assim como há anos os diabéticos dosam a taxa de glicose no sangue com aparelhinhos portáteis a qualquer momento, hoje os aplicativos eletrônicos permitem monitorar peso, ciclo menstrual, massa muscular, acúmulo de líquidos, controle de calorias, pressão arterial, avaliação nutritiva dos alimentos, etc. A IBM foi mais longe: criou um computador que entende a linguagem humana, processa as informações rapidamente e apresenta hipóteses diagnósticas. Onde isso vai parar? Qual será o limite? Haverá limite? Qual o perigo desse avanço?
Em abril deste ano, 2013, foi publicado um artigo no respeitado Journal of the American Medical Association (Jama) sobre avaliação de produtos para smartphones que prometem avaliar sinais de pele. O paciente tira foto de uma pinta da pele e o aplicativo informa se é necessário ir ao médico. Os pesquisadores concluíram que três dos quatro aplicativos analisados classificaram incorretamente 30% ou mais dos melanomas (um dos tipos de câncer de pele) identificados por um especialista. Por outro lado, existem dispositivos confiáveis para celulares que funcionam como um monitor cardíaco portátil. Neste caso o paciente coloca os dedos sobre dois pequenos eletrodos fixados na parte traseira do celular e ele fornece um eletrocardiograma. O aplicativo lê o resultado e envia pela internet ao médico.
É sabido que muitas doenças físicas são somatizações de abalos psicológicos. Assim, resta saber se algum dia a tecnologia irá alcançar os sentimentos, a ansiedade. Ainda não inventaram máquina que forneça empatia, conforto à alma com olho no olho, ausculta médica bem feita, raciocínio clínico perspicaz e uma mão que afaga com a mesma sensibilidade que manipula o bisturi. Ainda que não se deva desprezar os avanços tecnológicos em qualquer esfera de atividade, é importante que não se perca a essência humana, a preocupação em fazer do trabalho algo que faça sentido aos outros e a nós próprios. Isso inclui o entendimento simples de que homens não são máquinas. No binômio médico-paciente, se bem usada, a tecnologia pode facilitar a vida dos dois, desde que ambos valorizem o espelho com a mesma intensidade que valorizam o smartphone, para não esquecer que são gente, que também são tocáveis, também podem ter luz, e brilhar.