Há mais de 30 anos, desde quando ainda acadêmico de direito, sou perguntado sobre o porquê de a polícia prender e a Justiça soltar. Foram tantas as vezes em que me vi diante das mesmas perguntas pedindo as respostas de sempre que, pouco a pouco, fui adelgaçando o discurso, culminando com um lacônico “porque assim deve ser em uma sociedade em que cada instituição cumpre o papel que a Constituição lhe reserva”.
É um imenso equívoco atribuir aos Juízes a missão de combatentes da criminalidade, na maniqueísta e ingênua luta do bem contra o mal, e integrantes do sistema de segurança pública. Juízes são garantistas dos princípios e regras constitucionais, das liberdades e dos seus fundamentos. São pregadores da Carta Magna, devem ter consciência do seu lugar.Sempre que me vejo diante de uma prisão, procuro aplicar materialmente a Constituição Federal. Foco na presunção de não-culpabilidade, sabendo que o encarceramento antes de uma sentença condenatória transitada em julgado é medida extrema, admissível excepcionalmente quando absolutamente imprescindível em hipóteses taxativas, previstas no Código de Processo Penal. Jamais deve ser considerado como antecipação de pena, instrumento de vingança ou política de satisfação social. Tampouco a gravidade do delito, por si só, impõe automaticamente a privação da liberdade. A quantidade da pena para prender, remédio aplicado em doses cada vez maiores, evidenciando sua ineficácia para enfrentar a “doença”, não encontra reflexo na “Lei maior”.
Evito ao máximo fazer uso da justificativa da “garantia da ordem pública”, conceito vago, aberto e, por isso, uma luva moldada a todas as mãos e intenções, quando mais, órfã de critérios de constatação seguros. Perigosíssima, pois em nome dela, a princípio, tudo se encaixa.Ademais, se um delito provocou desestabilidade na ambiência pública, impõe-se primeiro ao Estado-Administração/polícia agir para restaurar a ordem, tranquilizar a sociedade e, somente após, cogitar da prisão antecipada.
Quando a ela se soma o “clamor social”, reproduzindo os mesmos problemas, com o acréscimo de não possuir soalho legal, estamos diante, então, de algo definitivamente antidemocrático, antigarantista e inconstitucional.
A própria compreensão de que clamor social tem sua evidência na gritaria e na comoção, já é suficiente para que seja vista com imensas reservas.
Odone Sanguiné leciona que “O clamor público é sem dúvida o mais vago de todos os requisitos da prisão preventiva. Se trata de um estereótipo saturado na maioria das vezes de uma carga emocional sem base empírica, porém que exigirá uma prévia investigação estatística sociológica que meça o efeito social real que o fato haja produzido. O certo é que o alarma social se medirá pela maior ou menor atenção que o fato haja produzido na imprensa (…)”.
Conceder/restituir/manter liberdade mediante fundamento eficiente, não implica risco à credibilidade do Estado-Jurisdição, na medida em que ela é avaliada em todos os processos, desde o Pacto Social, pelo qual o Leviatã se substituiu à vingança privada.
A legitimidade do Poder Judiciário, enquanto poder contramajoritário, sua confiança e imagem, não deve ser construída com a argila da irracional supressão de garantias fundamentais ou simplesmente colocando em um dos pratos da balança o peso da opinião publicada pela mídia, habilidosa em irradiar fatos dramáticos, abusando de hipérboles, sensacionalismo e imagens chocantes, ferramentas decisivas para forjar as “vozes das ruas”, criando maiorias de ocasião, induzidas a uma histeria coletiva e a esgrimir “soluções” simplistas/casuístas.Em julgado recente, o Des. Jayme Weingartner Neto (TJRS) fez oportuna lembrança sobre regra de ética judicial, grifando que deontologicamente “Os juízes não devem buscar o consentimento social da opinião pública, mas apenas a confiança das partes do processo (…)”.
A Justiça, último sítio em que a palavra é a protagonista e a violência o degredado, se afirmará com julgamentos céleres, com decisões fundamentadas, com respeito aos princípios gerais do direito e com a coragem dos seus magistrados para libertar/não prender – ainda que todos pensem de forma diferente ou como nas palavras de Boaventura: “Ainda que o mundo inteiro caia sobre eles”, provocando “el mínimo malestar necesario a los desviados” (Ferrajoli).