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Inverno

Não te preocupes, não é fumaça. Parece gelo seco, como num cenário de espetáculo.  Não é gelo seco, mas é espetáculo. É cerração na manhã fria anunciando tua chegada, Inverno. Então podes chegar. Já que é teu tempo, vem. Traz tua aragem, tua brisa mansa, teu vento frio. Traz fogão à lenha e fumaça nas chaminés das casas. Traz fogo na lareira, gente querida na volta, chimarrão de mão em mão e bate-papo solto olhando as brasas. Vem e traz pipoca salgada, pipoca caramelada, pinhão com mel, traz um filme na TV pra assistir deitado na cama e depois dormir de conchinha. Desliga o lençol térmico. Bacana é esquentar água pra encher a bolsa térmica, pra aquecer os pés do outro ou outra. Pode até ser garrafa pet pra esquentar os pés, o que importa é o gesto.
Vem, Inverno, estou te esperando. Chega com elegância. Vem com luvas, touca, manta e cachecol. Traz capa de chuva e tuas melhores vestes quentes. Vem com elegância. É possível ser elegante sendo simples, mas não sem ser interessante. Elegância é ser educado, mas com naturalidade. É saber ouvir, e não só falar. Elegância é pra qualquer um, mas ser qualquer um não é pra elegância. Elegância pode dispensar roupas caras e sofisticadas ou carro novo, mas nunca dispensa educação e postura. Estilo não dispensa atitude nem autoconhecimento. Elegância e estilo não dispensam valores de gente. Então vem, mas vem com identidade estética, te quero com personalidade.
Estou te esperando, Inverno. Faz o sol nascer vermelho no horizonte por trás das árvores nuas, desfolhadas. Anuncia esse mesmo sol na soleira da minha janela e me acorda com chocolate quente na manhã gelada. Mostra-me a magia dos galhos secos das árvores formando desenhos, que só os olhos preparados conseguem ver. Deixa-me brincar de fazer vapor úmido com o ar da boca na manhã fria. Traz contigo a imagem ímpar da geada no campo, esta pintura de chão que só tu sabes. Não chega a ser branco-neve nem verde-grama. Única imagem que gela os olhos mantendo retinas largas. Tanta beleza não cabe em pouca pupila. Traz contigo o sereno das manhãs traduzido no orvalho das folhas, das pétalas, do chão molhado. Traz tua cerração, tuas gotas caindo mágicas das árvores até o chão, beijando teu tapete de folhas. Traz chuva fria molhando cidades e campos, grama e gado nas invernadas. Faz chover mapeando com águas o tal mundo sem fronteiras. Serve pra mim uma sopa quente com pão na noite fria. Depois vou querer um bom vinho tinto, algum feito aqui perto, com aroma e sabor de coisa nossa. Mostra-me a lua cheia por trás das árvores desfolhadas, refletindo sua luz nos açudes e rios. Traz névoa úmida onde houver riachos e sangas. Traz a dança das folhas dos milharais musicada pelo assovio do vento forte. Traz grito de quero-quero nas campinas. Vai até os jardins e deixa que os beija-flores beijem as flores. Apesar do frio, elas insistem em encher a vida de cores e perfumes, nos ensinando que, apesar das adversidades, a vida pode ser colorida e perfumada. Leva-me aos mesmos jardins pra eu comer bergamota sob o sol do meio-dia. 
Inverno, quando chegares traz contigo a tua graça e a graça e alegria das festas juninas. Traz os pedidos das moças no dia de Santo Antônio. Traz festança de arraial com bandeirinhas penduradas, casamento caipira, quentão nos copos e pulos sobre fogueira rasa. Traz rapadura de amendoim e balas feitas em casa, como as da minha infância. Traz a tradição musicada nas canções da terra, as coreografias criadas no pátio de chão batido, que as gerações insistem em não esquecer.
Vem, Inverno. Não te preocupes, não é fumaça, é cerração. É o gelo seco do cenário do palco da natureza. Vem, não há o que temer ou esperar, vem e causa, faz acontecer. No espetáculo da vida o palco não tem cortinas.