Quem nunca ouviu a expressão: “mas tu não eras assim…” Desconfio que todos já fomos vítimas disso. Não entendo como as pessoas conseguem não pensar em nosso “agora”. Logicamente que nenhum de nós pode ser como foi. Um dia até minha filha perguntou: “Como tu eras na escola, pai?” Respondi: “Depende de qual dos de mim. Fui todos os possíveis. Acho que até houve um que se aplicava nos estudos. Outros nem tanto. Alguns menos estudiosos. Mas o que sei mesmo é que havia muitos pequenos adultos sonhando em brincar para fora de uma fábrica. E é exatamente por isso que não quero que você perca a infância ‘futurando’ as coisas. Amanhã tu já serás outra, e outra, e outra, e mais outra.”
Não sei como entender os “achismos” sobre o que somos ou deveríamos ser. É como se não merecêssemos um presente que tenha um “quê” de futuro pouco mais aceitável. Enganam-se os que pensam que o tempo para. Os que não acreditam em multidões nunca saberão olhar para dentro e perceber sua própria legião estrangeira. Subestimar o que nos tornamos com base em quem éramos é típico de algum vidente meio cego. É um ignorante de rios. Nem imagina que há mais do que uma margem para se chegar.
Ainda bem que os tempos de ontem só consigam se encontrar com aqueles de nós mesmos que fomos. É impossível resgatar os garotos que fui e trazê-lo para cá. “Presentificar” os “ontens” tem sido um erro clássico. “No meu tempo era melhor!” Melhor? Naqueles dias nem eu mesmo era o que sou. Como posso então medir aqueles com esses rios?
Lembro, por alto, que passei a me entender melhor quando abri o primeiro livro, acho que foi ele quem me abriu, enfim. O fato é que nasci ali, pois só nascemos de fato quando nos damos conta de que existimos – e há muitas existências. Não, não é fácil. As letras me salvaram. Hoje leio, escrevo. Saio um pouco de mim para me colocar aqui, neste lugar “escrevinhado”, uma vez que com as palavras reaprendi a navegar. Fernando Pessoa já escreveu: “navegar é preciso; viver não é preciso”. (Acalme-se, leitor aflito, ele se refere à precisão). Navegando, (seja com astrolábio, bússolas ou com os modernos GPSs) chegamos facilmente de um ponto a outro; vivendo, não. A vida é uma estrada que sempre está se fazendo, não há nada de preciso nisso. Nem sempre chegamos ao porto desejado.
Ah, sim! Não me compare mais àqueles outros. Eles agora sou eu. Muito prazer!