Nunca haverá melhor lugar para se discutir literatura e filosofia do que aquele fogão a lenha que tínhamos na prefeitura. Lá podíamos nos libertar. Tornar livres todas as almas que tínhamos e nem sabíamos que moravam dentro de cada um de nós. Não, não nasci professor. Houve um tempo em que eu lutava junto com esses companheiros (aqueles que comiam do mesmo pão: co+panis). Época difícil, preciso confessar, mas que trouxe o melhor dos outros para dentro de mim. Éramos operários. Homens simples, porém nada simplórios.
Sempre ao meio-dia, depois do almoço, nos reuníamos à volta de um desses fogões velhos do tipo que ninguém quer mais – e não queriam mesmo, até onde eu sei tratava-se do produto de uma doação. Estávamos acostumados a receber o que os outros não queriam mais. Quanto ao escritório, só lá haviam ares condicionados e outros luxos. Nós não, nos esquentávamos nas vozes, compartilhávamos de um chimarrão para amarrar as pontas de cada uma de nossas vidas, e filosofávamos…
Nos setores mais “limpinhos”, na certa que o aquecimento, tanto do ambiente quando do peito eram mais frios (tinham cafés frescos que eram preparados por colegas nossas). Eles não podiam desfrutar da literatura ativa que nos cobria e nos deixava quentinhos, um adendo dentro de um dia frio, mas sempre provocador e novo. E à tardinha, como de costume, seguia carregado de vozes para a Universidade, o lugar onde as letras que recebi de dia se vozeavam em uma vontade pouco mais complexa.
Como a vida é maluca, meu tempo ali passou. Fui seguir meu destino: dar aulas. Nos primeiros dias, confesso, não podia olhar para a janela, meu peito queria sair de dentro de mim. Via um caminhão com aqueles amigos e logo me batia uma vontade de sair me libertando com eles. Nossa casa durante o dia era o céu, nossa estrada, nunca sabíamos ao certo. De certa maneira, éramos livres.
Ninguém nunca parou para reparar num operário passando na rua com seu uniforme. Nossas roupas nos libertavam dos olhares. Agora eu estava ali, um professor, finalmente. Um homem que carregava consigo um universo inteiro de pessoas que o habitaram por tantos dias frios. Um ex-leitor de bancos de ônibus; de espaços apertados daquelas cabines de caminhões; um “sujador” de livros carregados no bolso; e um amante inveterado dos amigos. Como tenho saudades daquele lugar e daquele tempo que nem sequer existem mais.
Contudo, como o amigo Mauro disse uma vez: “Isso não vai durar para sempre, Dilso, cada um de nós seguirá seu caminho, porém, tudo isso aqui vai ficar guardado na melhor parte de nossas histórias. A vida precisa seguir seu curso.” – e seguiu mesmo!