Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais.
(Fernando Pessoa)
Para existir só precisava de um lampião, um pouco de querosene e a imaginação refestelada de uma criança curiosa. Era assim que meu avô paterno viveu boa parte de sua vida. Escuro? Não, as vozes eram bem claras naquele tempo. Tanto que sempre que o visitava percebia o espaço enchendo-se com uma conversa levemente grave e moderada. Ouvi muitas histórias se iluminar por ali. O encanto estava justinho na prosa e nos medos engordados pelos escuros a nossa volta. Ouvi cada lenda de arrepiar. Confiava (penso até que acreditava mesmo) na veracidade de suas próprias memórias inventadas.
O professor Fernando – assim o conheciam naquele lugar – era dotado de um poder incrível de imaginar. Bom, ele era um contador de histórias, um marujo de seus próprios mares. Dispensava tudo, menos a presença de ouvidos. Não pretendo ser romântico aqui neste texto, mas creio que amava ganhar a imaginação das pessoas. Quem sabe não poderia ser lembrado pelo apelido de “professor Fernando Pessoa”? Penso ser impossível. Ninguém conhecia o poeta por aquelas bandas, uma vez que os escuros não impediam somente a luz ambiente, também desligava o mundo dos mundos que vagamundeavam para fora da localidade, quem dirá do além-mar. Contudo, ardiloso leitor do mundo e de alguns livros, pôs o nome de um dos filhos de Paulo Sabino. Paulo, por razões religiosas; e Sabino para homenagear o escritor que admirava: o Fernando Sabino. Fernando já tinha, fez-se o Sabino. Digo isso só para provar que em suas veias corriam, também, literatura.
Volta e meia, enquanto estamos costurando as prosas pela cuia de chimarrão, meu pai ainda recorda de alguma coisa. Há sempre um cantinho faceiro que se ilumina nessa escuridão toda a que chamamos modernidade. Mesmo com a televisão ligada, por alguns momentos a ignoramos e sempre vem à tona um cochicho de vozearia: “Dormia ouvindo teu avô cantando esta música… ‘encosta tua cabecinha no um ombro e chora…”.
Pois então! Todas estas imagens me retornaram – preciso dizer – por conta de José Arcádio. Ando relendo o “Cem anos de Solidão”, de García Márquez. E, assim como na obra, penso que o gelo também faria sucesso nos tempos do velho Professor Fernando, tal como fez com os Buendía, não menosprezando sua inteligência, claro, mas pensando sobre aqueles lugares escuros e pelos quais, hoje, são como a novidade de um ímã trazido por ciganos a certa civilização que se esqueceu de como conversar baixinho, cara a cara… Quando, em meio a tanta “eletricidade”, um livro bastou para acender novamente aquele farol. Aquelas estórias que carregavam um cheiro forte de querosene e saudades.
Eu tinha uns oito anos de idade quando o lampião se apagou… e no escuro, solidão.