RÉGIS DE OLIVEIRA JÚNIOR – ESPECIAL MSF e UNICOM
O percurso durou um mês e meio. O caminho foi longo e árduo. Aly Ahmzad, um arquiteto sírio de 37 anos, a mulher e a filha andaram por matagais, pântanos, atoleiros, praias, florestas. A família dormiu na rua, na prisão e em uma barraca improvisada. Apanharam. Ficaram perdidos e passaram fome até chegar à beira-mar de Akyarlar, uma praia deserta na costa da Turquia. Os sírios seguiram em fila indiana na direção de um pequeno bote vermelho e preto, que tinha capacidade para 90 pessoas – e que, naquela madrugada fria, levaria ao menos 200.
O som arcaico do motor violava o silêncio nas águas densas do mar de Mármara. O barco balançava muito. As crianças choravam. A família tentou duas vezes chegar à Grécia. Na primeira tentativa, a polícia turca avistou o bote. Na segunda, o grupo ficou horas parado no mar porque o motor parou. Durante a travessia, Aly segurava forte o Alcorão, – considerado pelos muçulmanos a palavra literal de Alá, ou seja, Deus, em árabe.
Ele carregava uma mochila com remédios, roupas e garrafas de água. Na fronteira da Grécia, prenderam sua esposa. Escondido, seguiu com sua filha em direção à Macedônia. Depois de pagarem propina para um policial em Kosovo, entraram no porta-malas da viatura até a Bósnia. De lá, um ônibus saiu com outros refugiados que pretendiam chegar à Croácia. Acuados, eles conseguiram fugir das cercas com arames farpados, na cidade de Bihac, depois de andar três dias pela selva.
A tentativa de buscar um novo lugar para viver foi novamente interrompida na fronteira da Croácia com a Eslovênia. Os militares das Forças Armadas da Eslovênia encontraram o acampamento, roubaram a água, torturam as crianças e mataram um amigo de Aly. O grupo permaneceu preso por duas semanas. O arquiteto sírio e a filha pretendiam chegar à Hungria. Para isso, percorreram mais de vinte quilômetros por uma estrada abandonada. Logo, encontraram trilhos de trens. O alimento era encontrado pelo chão e a água encontrada, nos córregos próximos, saciava a sede. Aly e a filha esperavam por um trem que jamais chegaria.
Em Budapeste, o governo tinha fechado a estação de trem de Keleti para evitar que mais pessoas chegassem ao país. O trajeto em direção à Hungria foi maior – os refugiados sírios percorriam o mesmo caminho dos húngaros em 1956. Na época, as vítimas fugiam dos conflitos armados contra as tropas soviéticas que invadiram o país.
Foram seis dias andando sobre os trilhos até a fronteira.
A família fugiu de Damasco, na Síria, em abril deste ano. Aly, a esposa e a filha abandonaram a capital depois que o bairro de al-Yarmouk foi destruído com bombardeios. O refugiado sírio vendeu o carro, móveis, abandonou o emprego e sacou suas economias.
CAMINHO DE INCERTEZAS
Desde a Segunda Guerra Mundial, nunca houve um movimento tão grande de refugiados no mundo. Em 1940, 60 milhões de pessoas deixaram seu país em busca de abrigo. Atualmente, 54,2 milhões lutam por proteção, de acordo com os dados oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU).
A Síria vive quase cinco anos de guerra civil. No Afeganistão são três décadas de êxodo. A fome e os conflitos armados fazem as pessoas escaparem da Somália. Na Eritreia a ditadura é o motivo pela busca de uma segunda chance.
Assim como mais de 2 mil sírios, Aly Ahmzad e a filha adolescente conseguiram refúgio no Brasil. Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), no país, há cerca de 8.530 refugiados reconhecidos vindos da Angola, República Dominicana do Congo, Colômbia, Líbano, Libéria, Iraque, Serra Leoa, Palestina, Senegal, Somália, Nigéria, Cuba e Bolívia. Na fila, 12 mil solicitantes aguardam julgamento do Conare.
Aly chegou ao Brasil em agosto. Após um mês de trabalho duro, como auxiliar de pedreiro em uma obra, o arquiteto não recebeu o salário mensal. Sem os documentos, o sírio não pôde fazer sua carteira de trabalho e sequer abrir uma conta no banco. Além do preconceito, Aly e a filha tiveram dificuldades para aprender o português e encontrar emprego formal.
A força para seguir vivendo, em meio a tamanho sofrimento, Aly Ahmzad, tira da esperança de um dia reencontrar a esposa. Enquanto esse dia não chega, ele se une a outros milhares de refugiados, na luta diária para, ao menos, tentar deixar para a filha, um mundo sem tantas guerras, dores e violência.
No Vale do Rio Pardo, enquanto o idioma alemão desaparece das ruas de Santa Cruz do Sul (RS), vozes indicam que uma língua diferente está ecoando entre as esquinas da Marechal Floriano e Ramiro Barcelos. Em frente a um dos restaurantes mais frequentados do centro da cidade, o Quiosque da Praça, quatro homens que vieram do outro lado do oceano Atlântico dividem um pequeno espaço sobre a calçada e se comunicam entre si através do único idioma que dominam: o francês.
Baden, de 27 anos, o irmão e dois amigos atracaram clandestinamente no Porto de Rio Grande em 2013. Partiram em viagem sem sequer saber o destino e a jornada que findou no Brasil durou três meses, em um longo e extenuante percurso. Antes de chegar ao Brasil, os jovens já haviam tentado fugir do Senegal. A mãe de Baden foi morta no conflito civil em Casamance, cidade localizada ao sul da Gâmbia e ao norte da Guiné.
Ao chegar no país, o grupo de quatro senegaleses percorreu 800 km do Porto de Rio Grande até Santa Cruz do Sul. O primeiro destino era Caxias do Sul (RS), mas os abrigos da cidade, na Serra Gaúcha, já estavam lotados. Baden e os amigos precisaram dormir por algum tempo na rua e em uma barraca improvisada com papelão. Dias depois pegaram um ônibus até o Vale do Rio Pardo.
Dos quatro, Baden é o único que fala português. Mal, mas fala. Ele é o intérprete dos colegas. É alto, magro e tem um olhar triste e sonhador, apesar da dura vida que teve de enfrentar. No mês passado, saiu de uma clínica onde permaneceu internado para tratar o vício das drogas. Os amigos dizem que vive vendendo-se por sexo.
Em maio, Baden foi diagnosticado com sífilis, uma doença causada por bactéria e transmitida através de relação sexual desprotegida. Em 2014, um laboratório de análises clínicas suspeitou que houvesse um surto silencioso de doenças sexualmente transmissíveis entre os migrantes e denunciou o fato à Secretaria Municipal de Saúde.
O município auxiliou os senegaleses na confecção do Cartão SUS para garantir atendimentos, consultas, exames e procedimentos médicos via Sistema Único de Saúde. Na época, cerca de 60 haitianos e senegaleses foram submetidos a testes de HIV e sífilis, contudo nenhum caso foi confirmado pela Prefeitura.
Na rua São José, próximo ao Bom Jesus, bairro da periferia, os refugiados dividem o aluguel de uma casa de madeira com dois cômodos. O espaço é pequeno e a locação de trezentos e vinte reais está atrasada há mais de dois meses. Sem emprego formal e sem domínio do português, eles recorrem à prostituição para sobreviver. O programa custa em média trinta reais.
Antes de vender o próprio corpo, os senegaleses sobreviviam do comércio de CDs e DVDs piratas, relógios e pulseiras. Porém, as mercadorias foram apreendidas pelos fiscais da Prefeitura e pela Polícia Federal. A legislação municipal em Santa Cruz do Sul restringe o comércio ambulante e além disso as mercadorias eram contrabandeadas do Paraguai.
A recessão econômica brasileira tem sido uma grande barreira encontrada pelos refugiados em busca de um novo mundo. Os setores de construção civil e da indústria estão demitindo empregados e evitando novas contrações. Prefeituras de todo o país encontram dificuldades para garantir assistência. Sem responsabilização jurídica e legal, o auxílio municipal é insuficiente para amparar os senegaleses.
Na contramão da realidade e alheia à situação dos refugiados no Brasil, que não têm emprego e sequer as mínimas condições de sobrevivência, o discurso da presidente Dilma Rousseff (PT) revela um Brasil “sem crise” que está de braços abertos para ajudar os migrantes. “Nós somos um país continental, e para todos os refugiados que quiserem vir trabalhar, viver em paz, ajudar a construir o país, criar seus filhos, desenvolver e viver com dignidade, nós estamos de braços abertos.”
O senador Lasier Martins (PDT-RS) encaminhou um requerimento cobrando respostas do governo federal frente às ações migratórias de refugiados nos últimos meses. Por telefone, Lasier disse que é importante debater a atuação do Brasil. “O objetivo é conhecer as ações que estão sendo feitas após o acolhimento dessas pessoas no país, sobretudo no tocante a sua inserção social e profissional”.
Ativistas dos Direitos Humanos dizem que é preciso aprovar uma nova Lei de Migrações para suprir as demandas atuais. Kai Michael Kenkel, doutor em Relações Internacionais da PUC-Rio, defende políticas públicas efetivas e específicas para atender os refugiados. “Existe uma responsabilidade moral humanitária de ajudar essas pessoas. O Brasil pode e deveria receber mais refugiados no país”, disse.
Ana Rita Gil, investigadora em Direitos Humanos dos Imigrantes da Universidade de Lisboa, em Portugal, diz que a comunidade internacional tem responsabilidade em acolher de forma digna os refugiados. “Ninguém pode ser enviado para um país onde possa incorrer em tratamento desumano e degradante. Os países não podem ignorar a crise”, assegurou.
Por meio das Convenções de Genebra, de 1949, e suas normas adicionais, os paísesmembros da Organização das Nações Unidas (ONU) são responsáveis legais com relação ao abrigo de refugiados.
Conforme Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), o Brasil é um dos poucos países que participam do Programa de Reassentamento do Acnur. “A ONU define que estrangeiros com fundamentado temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião e grave violação dos direitos humanos são caracterizados como refugiados”.
Beto Vasconcelos, secretário nacional de Justiça e presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), assegurou medidas para assistência humanitária e combate à xenofobia e à intolerância. “A campanha do Ministério da Justiça tem o objetivo de sensibilizar sobre o drama humano vivido atualmente por milhões de pessoas que precisam sair de seus países de origem por motivo de guerras e perseguições”, explicou. Com tantas dificuldades em Santa Cruz do Sul, Baden e os amigos sonham em voltar para casa e cursar uma faculdade. O sonho é tão distante que eles nem pensam qual profissão gostariam de ter, querem apenas um emprego, qualquer que seja, e uma família. Enquanto esse dia não chega, as músicas africanas embalam os sonhos dos senegaleses.
SOLIDARIEDADE SEM FRONTEIRAS
Diante das barreiras legais, a solidariedade e o trabalho humanitário ganham espaço no mundo. Em Renânia-Palatinado, na Alemanha, Jörg Bruch abriu um alojamento com ajuda dos vizinhos para abrigar refugiados vindos da Síria e Afeganistão. No local, os voluntários oferecem cursos de alemão, artes e consultas médicas.
Em Brasília (DF), irmã Rosita Milesi, diretora do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), recebe migrantes e refugiados desde 1999. A motivação vem das histórias de luta e superação. As ações querem dar continuidade à vida interrompida pela guerra e pela fuga. Irmã Rosita carrega na memória lembranças marcantes. A freira foi a segunda mãe de uma criança nascida atrás das grades e vítima de traficantes Colombianos. No IMDH, os refugiados recebem tudo que precisam, inclusive cuidados de saúde mental no Instituto.
No Mar Mediterrâneo, milhares de refugiados estão sendo resgatados pelas operações da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF). Em botes, escondidos até mesmo nos porões, muitos deles crianças de colo e idosos em idade avançada são encontrados abarrotados, com frio, fome, sede, exaustos após longas horas à deriva, sob sol escaldante ou intensas precipitações.
Lia Gomes, representante do MSF, disse durante entrevista coletiva no Rio de Janeiro (RJ), que os profissionais prestam assistência e cuidados psicológicos para pessoas que arriscam suas vidas no mar para fugir de conflitos armados e situações de violência.
Em 2014, Médicos Sem Fronteiras realizou 185 mil atendimentos em saúde mental. Vanessa Cardoso, gestora de pessoal do MSF-Rio, afirma que os efeitos psicológicos causados pelos traumas precisam de acompanhamento profissional. “Medo, insônia e dor física generalizada são alguns sinais de extremo estresse”, conta.
Blenda Marceletti de Oliveira, especialista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise, explica que os refugiados passam por fortes abalos emocionais. “A situação já é traumática. Se eles ficarem morrem, se eles fugirem também correm risco de morrer”, diz. Segundo Blenda, por falta de dinheiro, as famílias Sírias enviam os filhos pequenos à Europa com grupos de traficantes. “As crianças são as mais prejudicadas. A travessia difícil causa choques marcantes e por isso é tão importante este auxílio psicológico”, esclarece.
Três psicólogos e um psiquiatra fazem acompanhamento dos refugiados que chegam à Caritas, em São Paulo (SP). Por ano, são 1.200 atendimentos. No Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus) o auxílio é para as crianças. No Rio de Janeiro (RJ), a Caritas recebeu 150 solicitações de ajuda em 2015. Projetos como Futebol, Roda de Conversa com Mulheres, Arteterapia fazem parte do tratamento aos refugiados.
Famoso pelos tratados que ajudaram a unificar o mundo, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) está trabalhando duro dentro das zonas de guerra na Síria. O CICV e o Árabe da Síria Red Crescenzi (SARC) forneceram comida para 4,7 milhões de pessoas. Pelo Twitter, Peter Maurer, presidente do CICV, disse que as pessoas estão fugindo de suas casas por uma razão. “A guerra deve acabar para que eles tenham a opção de ficar em casa”, postou.
Barbora Cernusáková, pesquisadora da Anistia Internacional, que está atualmente na fronteira da Croácia e Eslovênia, disse, por telefone, que a União Europeia precisa agir rapidamente para evitar consequências drásticas. “Os países da UE devem trabalhar em conjunto, respeitando a dignidade dos refugiados”. Cernusáková garante que excessos são cometidos pelas polícias da Croácia e Eslovênia. “Milhares de refugiados estão sendo presos em condições desumanas”, contou.
PONTO DE PARTIDA
Em busca da aniquilação do inimigo, guerrilheiros promovem massacres sangrentos. Os bombardeamentos, atentados com armas químicas, morte de crianças e torturas desenham a maior crise de refugiados da história.
De acordo com Ana Rita Gil, investigadora em Direitos Humanos de Imigrantes, os sírios estão deixando seu país por causa da instabilidade gerada pelo Estado Islâmico. “As pessoas temem pela sua segurança devido à guerra civil”, acredita.
O grupo radical Estado Islâmico afirma ter infiltrado mais de 4 mil terroristas em grupos de refugiados causando temor nos Europeus. Ana Rita discorda. “Dizer que o EI colocou terroristas entre os refugiados é o mesmo que dizer que os nazistas infiltraram tropas entre os refugiados judeus na Segunda Guerra”, argumenta.
Kai Michael Kenkel, doutor em Relações Exteriores, entende que a intenção do EI é incitar o medo. “O Daech já consegue recrutar em números consideráveis dentro da Europa e entre a população de origem. Trata-se de uma estratégia para causar pânico”, diz.
Os sírios viviam no regime do presidente Bashar Al Assad, que utilizou gás sarin para dizimar mais de 1,4 mil pessoas nos subúrbios da capital Damasco. Em 2012, um grupo da al-Qaeda surgiu no Iraque e ocupou parte do território da Síria.
O Estado Islâmico ataca parte da população civil, estupra mulheres, corta cabeças de crianças, sequestra e mata jornalistas. Os jihadistas fizeram com que 4 milhões abandonassem o país e sete milhões se deslocassem no território sírio. As manifestações pacíficas da Primavera Árabe foram minimizadas pelo governo, e os confrontos se transformaram em luta armada.
Os abusos cometidos pelo EI foram denunciados por diversas organizações internacionais. Sem acordo com os grupos extremistas, a comunidade internacional não consegue agir para conter a guerra. Gabriel Valladares, assessor jurídico da Cruz Vermelha, afirmou que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) faz atuações estratégicas. “Nossa única preocupação é a ajuda humanitária”, explicou.
O Direito Internacional Humanitário regulamenta os procedimentos aceitáveis em situações de conflito armado. Ou seja, não é violação matar alguém em campos de batalhas, mas a forma como se mata pode ser condenável. “Os direitos de um combatente em um conflito armado internacional são defender-se, mas, também, atacar. No conflito, o DIH permite apenas ataque aos combatentes. A regulamentação não permite a execução de civis, profissionais de saúde, correspondentes de guerra e soldados feridos”, finalizou Valladares.
A intenção do CICV é atuar de forma imparcial e neutra, socorrendo os indivíduos que foram atingidos pelos combates. Em determinados Estados, os governos ditadores não permitem a atuação da Cruz Vermelha, como é também o caso de algumas regiões da Síria.
Clique no link para assistir o VÍDEO: “Operação de busca e resgate no Mar Mediterrâneo” – https://www.youtube.com/watch?v=HLD2h6Ok7-k