“Não”, monossílabo terrível que nos leva do ventre da mãe, das tetas da mãe e se interpõe ao nosso ímpeto em direção ao prazer contínuo. Palavra, às vezes, tão dura para quem recebe como para quem diz. Que nem sempre é verbalizada, mas expressa em ações negativas, de um lado, e frustrações de outro. Acordei com um pensamento estranho que talvez venha de um sonho: uma pessoa tem na vida um número fixo de “nãos” para receber. Às vezes nem chega a recebê-los todos, pois encontra antes a morte, O Grande Não. Mas, enquanto vivo, o “não” deixado de receber na infância será recebido mais adiante e talvez seja ainda mais dolorido, e aí talvez não mais esqueça, como estamos programados para esquecer grande parte da infância.
Meditações de mais um dia de quarentena, constrangimento ao qual aderi voluntariamente junto a cerca de um terço da população, em face ao vírus que nos ameaça e também graças ao fato de que não necessito comparecer presencialmente ao trabalho. Os cuidados, no entanto, cabem a todos, não só a quem está em quarentena; pois agora já não é possível alguém não saber que, mesmo assintomático, pode passar adiante uma doença que mata e deixa sequelas. Em uma minoria, é verdade, mas que pode ser sua irmã, seu avô, ou a vigésima quinta pessoa na cadeia de transmissão que você iniciou e que nunca vai ficar sabendo, a não ser pelos números já impressionantes dessa peste.
O curioso é que vamos acumulando aqueles “nãos” pela infância um tanto resignados, pois eles costumam vir das pessoas que estão em nosso mais alto panteão: os pais. Lá pelas tantas, percebemos que eles não são aqueles deuses que imaginávamos. Sua humanidade nos soa como corrupção e passamos a contestá-los de maneira veemente e muitas vezes injusta. Este aspecto só vamos perceber muito adiante, ou às vezes nunca.
Quando o mundo, a sociedade, o Estado assumem a pronúncia do “não”, é quando mostramos se fomos equipados para isso, se criamos a musculatura moral para sobreviver ao sentimento de frustração, perceber sua racionalidade e estabelecer um rumo de ação pela vida. Tudo é mais complicado com os humanos!
Quando alguém nos diz que não podemos nos encontrar com os amigos, os parentes; que não devemos sentar em uma mesa de bar; que o seu comércio terá que cumprir determinados protocolos ou nem vai abrir; que é melhor que façamos tudo em casa e sem empregados; que temos que vestir o nariz e a boca com uma pestilenta máscara, se for inevitável o convívio social; aí é que percebemos o mundo para o qual nossos pais estavam nos preparando. Um mundo compartilhado, de limites e regramentos, mas sobre o qual somos sempre capazes de construir significados e dar razão à vida. Que ter limites não é o fim do mundo e só os imaturos perdem seu tempo de vida a se lamentar dos pais ou do governo porque não podem fazer tudo o que lhes dá prazer ou satisfaz suas ambições. Porque algo invisível, do qual a Ciência ainda não nos libertou, limita nossas ações. Porque agora estamos nessa ou naquela “bandeira”.