Mesmo as democracias consolidadas são ameaçadas, hoje, pela crise do sistema financeiro global. É clara a incompatibilidade objetiva entre o processo de enriquecimento sem trabalho, da atual fase do capitalismo global, com os sistemas socialdemocráticos estabelecidos, responsabilizados falsamente pela crise.
Nesse contexto, pergunto: não se deve abrir um debate honesto sobre democracia e a ideia do socialismo, tomando este não mais como modo de produção “pré-configurado”, mas como ideia reguladora?
Sustento que socialistas e comunistas não têm feito este debate por dois motivos.
Primeiro, porque, nos governos, enfrentam a questão da governabilidade, a partir de alianças muito amplas, às quais esse tema arrepiaria.
Segundo, porque as tarefas de governo tendem a promover a abdicação da reflexão teórica pela necessidade empírica de “resolver coisas”. Resolvê-las para responder exigências alheias às questões concretas do socialismo, que não estão em jogo em nenhum lugar do Ocidente, com exceção de Cuba e, aliás, em sentido inverso.
Mas há uma razão de fundo, que encobre as duas acima citadas e imprime passividade às culturas socialistas partidárias, na atual conjuntura mundial.
É a recusa, consciente ou inconsciente -por incapacidade ou opção-, de abordar a questão do socialismo, em conjunto com a questão democrática.
Através desse exercício ficaria clara a dificuldade de manter bases eleitorais afinadas com um regime de acumulação ou distribuição socialista, dentro da democracia política. É preciso encarar esta verdade.
A socialdemocracia reformista, que assumiu os governos de esquerda neste período, recuou, em consequência, da “utopia socialista”, para se preservar na “utopia democrática”. Abdicou, assim, da ideia da “igualdade” -presente nas propostas socialistas- para assumir a ideia da “fraternidade” em abstrato, presente na ideia de solidariedade, na constituição política do Estado social de Direito.
Só que essa fraternidade funciona, no sistema global em curso, como pura exigência de renúncia para os “de baixo”. Não como sacrifício para os “de cima”.
E funciona em momentos de bonança, como distribuição limitada de recursos “para os de baixo”, (através de salário e outras prestações sociais) e como acumulação ilimitada de riqueza para os “de cima” (através do lucro e da especulação financeira).
É isso que gera incompatibilidade, globalmente, entre capitalismo e democracia, promovendo grandes dúvidas sobre o futuro da democracia, inclusive na Europa.
As experiências socialistas “reais” resolveram este dilema (“da máxima desigualdade” aceitável e da “mínima igualdade exigível”) através dos privilégios regulados no aparato de Estado e do partido.
Esses quadros foram se liberando dos seus compromissos originários e simulando que a “igualdade verdadeira” estava logo ali. E não estava. A socialdemocracia “de esquerda”, na Suíça, Suécia, Dinamarca, Noruega, regularam a desigualdade máxima e organizaram a economia para um modo de vida mais duradouro e menos renunciável, pelos seus destinatários, do que as experiências soviéticas.
Pode-se dizer que ambas as experiências -formas específicas de capitalismo de “Estado” ou “regulado”- promoveram paradigmas modernos, à sua época, de igualdade social.
Deixaram, porém, em aberto a questão da democracia socialista como modelo universal, na qual a diferença entre “máxima desigualdade aceitável” e a “mínima igualdade exigível” seja estabelecida como projeto universal para uma humanidade fundada na paz e na justiça.
A esquerda pensante, pelos seus partidos, tem o dever ético de retomar este debate e esta utopia.
*Governador do Estado do Rio Grande do Sul