Aos poucos vamos retomando parte das atividades, envolvimentos e programas que estávamos habituados a fazer, sobretudo aqueles que seguiram à risca o largo período de isolamento e distanciamento social (tendo condições de fazê-lo).
Nossa geração terá muitas histórias para contar aos que virão sobre as intercorrências, limitações e perdas – em várias dimensões – determinadas pela pandemia. Provavelmente sequer a gripe espanhola e, mais ainda, as duas guerras mundiais produziram efeitos tão intensos e deletérios. Os reais impactos levaremos algum tempo ainda para conhecer e assimilar.
Faço essa introdução, porque tornando com mais frequência aos espaços públicos, é doloroso ver aquilo que já estimávamos, percebendo o quão muitos dos brasileiros empobreceram nos últimos anos.
Não somente em razão da pandemia, na minha avaliação a responsabilidade preponderante por esse estado de coisas é a adoção nos últimos seis anos de um ultraliberalismo selvagem, uma política econômica que enterrou o parque industrial nacional, que reduziu veloz e profundamente o mercado consumidor, que entrega a preços módicos empresas estatais, inclusive algumas superavitárias, e oferece às aves de rapina multinacionais nossas riquezas e reservas ambientais – sem nenhum pudor, no mais absoluto e vergonhoso servilismo. O calote dos precatórios é apenas a cereja do bolo.
O vazio da fome voltou com força, atingindo centenas de milhares de irmãos nossos, o desemprego cresce, a precarização do trabalho oferecido beira o escravismo, os preços estão nas alturas e a inflação dá ares de descontrole. A classe média deixou de viajar, de frequentar restaurantes, dispensou auxiliares, cortou despesas com plano de saúde, retirou filhos da escola particular.
Pequenos comerciantes estão fechando ou reestruturando seus negócios. As vendas despencaram em vários ramos da atividade econômica. As tarifas públicas e o preço dos combustíveis se tornaram proibitivos.
Apenas uma minúscula bolha está imune. São os que desde sempre ganharam às custas da miséria do povo, aqueles que apostam na especulação financeira e imobiliária, é o rentismo que não emprega e não gera receitas públicas, são os grandes sonegadores e aqueles que desviam ativos para paraísos fiscais.
Há também uma outra bolha, muito maior que a primeira, cujos integrantes, sem consciência de classe ou com uma visão distorcida da realidade, se imaginam protegidos, mais bem colocados e muito próximos dos grandes potentados.
Mal sabem e não conseguem ver que a distância que os separa da elite e das grandes riquezas é oceânica, ao passo que da pobreza se diferenciam por terem uma casa melhor/maior, um carro mais novo ou de um modelo com mais recursos e tecnologia, a possibilidade de adquirir um pacote parcelado para viajar sete dias por ano para uma praia do nordeste e de fazer algumas comprinhas em shopping centers. Também sobra um pouco para fazer selfies (com muitos filtros) em barzinhos da moda.
Essa ilusão (ou negação) é decisiva para que assimilem valores, discursos e posturas tais quais as dos endinheirados. Rejeita políticas públicas de inclusão social, redução da desigualdade absurda e de acesso a bens e serviços essenciais.
Não suportam compartilhar aeroportos, restaurantes, lojas legais e bancos universitários com a pobreza. Querem que esses espaços sejam somente seus, únicos, privilegiados. Querem continuar explorando, sem se dar conta do quanto são explorados e descartados pelo sistema.
O desalentador é a ausência de freios que contenham toda esta ordem de destruição. A propósito, alguns são abdicados pelo “tráfico” de recursos públicos, pela troca por migalhas representadas pelas famigeradas emendas parlamentares (secretas, inclusive!) – muitíssimo menos benéficas que os malefícios sociais viabilizados para as lograr.
Há esperança? Sim, há, porém ela não é dada, a alteração da realidade deve ser construída, urgente, enfática e democraticamente.