Dias atrás, descia a rua ainda escura para levar minha filha ao colégio e me bateu uma revolta de pantufas. Passamos por um guri que arrastava sua mochila, mais adiante dois zumbis cuja cor do uniforme mal se podia distinguir àquelas horas. O que essas criaturas em fase de crescimento, e eu, fazemos pela rua em um horário tão inóspito? Agradamos a um Deus que ficou em casa, pendurado na parede. Não esse, aquele outro, com ponteiros.
Não é que vá cair um pedaço. Quantos trabalhadores acordam às cinco da manhã para pegar a condução e ainda têm que correr para chegar no horário! Mas onde começa toda essa necessidade de correr enquanto olha para o pulso, ou respirar ofegante enquanto ilumina o ônibus com a tela do celular?
No caso de uma escola particular de classe média, só posso imaginar que sejam resquícios de uma moral puritana ou da Reforma Protestante, que em seus áureos tempos influenciaram a cultura, a ciência e a tecnologia e até determinaram quais seriam os países prósperos do capitalismo industrial. Uniam a disciplina, o trabalho e a riqueza à graça divina e um olhar de desconfiança para com a diversão. Até hoje encontramos pessoas que tentam parecer mais atarefadas do que realmente estão. Andam apressadas, de preferência falando ao celular. Quem conhece o tipo sabe muito bem que aquilo vai além do necessário.
Foi aquela mesma tecnologia que nos trouxe a um estágio em que o fator trabalho, à moda antiga, é cada vez mais dispensável. Mais valem o conhecimento e a escolha do que e como fazer. De nada adianta se esfalfar trabalhando de sol a sol, se o produto desse trabalho não tem valor, se uma máquina pode fazê-lo por menos.
Já dizia o mestre Mujica que tudo o que consumimos é pago não com dinheiro, mas com tempo de vida. Transformamos vida em dinheiro e dinheiro em bens de consumo. Alguns destes, como o celular, ainda ampliam a colonização do tempo de vida pela necessidade de trabalhar-comprar. Equipamentos melhoram a sua produtividade, mas ao final todos se atualizam e estás no mesmo lugar relativo.
A sociedade pós-industrial, a quarta e a quinta revoluções industriais, em tese, deveriam nos proporcionar mais desfrute e menos grilhões. Mas o que vemos são trabalhadores cada vez mais angustiados, em relações precárias de trabalho, que se sujeitam a todo o tipo de changa, e um contingente cada vez maior de pessoas sem qualificação e colocação no mercado de trabalho. Estruturalmente, isso não faz sentido, exceto se alguém que não vemos estiver se apropriando dos ganhos de produtividade, o tempo que lucraríamos ao evoluir.
Me recusei a tirar as pantufas ao sair de casa porque havia sonhado com a idílica ilha de Sommar, na Noruega, onde em 2019 os cerca de trezentos habitantes se reuniram em assembleia e decidiram cancelar o relógio. Como lá ou sempre é noite ou sempre é dia, já se praticavam horários bem particulares, como crianças brincando na praça e os mais velhos cuidando de seus jardins às duas ou três da manhã. Enfim, se deram conta de que os relógios, em seu rígido compasso, não eram naturais em suas vidas e os penduraram numa ponte, como aos cadeados em Paris, só que para comemorar a liberdade.