O mito do brasileiro como um Ser cordial nunca me seduziu, até porque sua construção foi propositalmente desvirtuada.
Concordo com a crítica literária que lê na definição cunhada por Sérgio Buarque de Holanda uma referência à cordialidade enquanto manifestação que emerge do coração, desconectada da razão e, eventualmente, até da moral.
Assim não estaria o escritor do clássico “Raízes do Brasil” querendo dar forma a uma figura dócil, que se esforça para ser agradável e simpática.
Creio que se trate mesmo de uma alegoria linguística, sugerindo maior proximidade com um “homem” excessivamente informal, propenso à intimidade, sanguíneo, potencialmente irascível.
Isso ajudaria a explicar o famoso “jeitinho brasileiro”, a frequente promiscuidade e confusão entre o público e o privado e expressões de violência – estatal e na sociedade. Não por acaso nossa história republicana é uma sucessão de ditaduras civis e militares, com alguns intervalos democráticos.
Nos últimos anos, sob o véu de uma democracia formal, tornamos a experimentar uma realidade que imaginávamos não mais ser possível, após o fim da longa noite escura de 1964 e o advento da Constituição Cidadã.
Nossa geração pós década de 1970 sente o gosto amargo da censura, a dor do chicote da opressão. O ódio livrou-se das amarras que o continha e explode, numa senda descontrolada. Transformaram o País num hospício.
Há muito tantos membros de movimentos sociais não eram assassinados. Lideranças populares são executadas à luz do dia. A população indígena percebe que caminha em direção ao cadafalso. Dizimada, sem terra!
Fernando Brandt escreveu “Carta à República”, canção que Milton Nascimento imortalizou, e ela se faz tão atual: “Eu lutei, apanhei, eu sofri, aprendi. Eu berrei, eu chorei, eu sorri. Eu saí para sonhar meu País. E foi tão bom. Eu não estava sozinho. A praça era alegria sadia e o povo era senhor. Mas o sonho andou para trás e a mentira voltou. E foi por ter posto a mão no futuro, que no presente preciso ser duro. Eu não posso me acomodar….”
Sei, não é um fenômeno local, a loucura nazifascista mostra-se em todos os quadrantes; porém aqui em Terrae Brasilis, é mais disseminada e intensa.
Estabeleceu-se uma espécie de autorização para ameaçar, agredir, ofender, espezinhar, dar de costas à racionalidade. A ignorância e a truculência são ostentadas. O politicamente incorreto é gritado sem corar, seguido por likes e aplausos. A burrice e a estupidez nunca estiveram tão à vontade.
A imprensa passou a ser cotidianamente agredida, o “cala boca” ronda as redações. Jornalistas mulheres são as preferidas da covardia autoritária. As críticas e questionamentos não são bem-vindos. Bocas que deveriam agregar e acolher espumam raiva, desprezam a vida, rejeitam a diferença, obscurecem a transparência.
O macarthismo alcançou os funcionários públicos que resistem ao aparelhamento das instituições.
Parlamentares que denunciam suspeitas de corrupção ou mau uso do dinheiro público são escancaradamente ameaçados, precisam reforçar a segurança sua e de seus familiares. O linguajar e agir miliciano se naturalizaram, “vai se ver com a gente” prometem! As redes sociais potencializam o crime e irradiam a sandice.
A porta do exílio outra vez é o recurso usado por políticos, ativistas, repórteres investigativos, intelectuais e cientistas ecoarem sua voz e salvarem suas vidas.
Cumpra-se o que profetizou o poeta: “Que o medo não conviva nas casas, nos bares, nas ruas. Que até dê para pensar no futuro. Ver nossos filhos crescendo e sorrindo”.
Que no amanhã o medo não nos faça cativos, que a liberdade oxigene o pensar, que se volte a falar de amor, a cantar, a dançar, a sorrir. Que se goze a vida. Que a esperança ressurja no horizonte da juventude. Que sejamos mulheres e homens cordiais, mesmo que necessariamente inquietos, irresignados e críticos.