A fé é colateral à ignorância. Não há, aqui, nada de depreciativo. Apenas a constatação de que, se aquilo que se crê através da fé pudesse ser verificado e repetido a qualquer momento sob determinadas condições em um ambiente controlado e pudesse assim ser compreendido em uma sequência causal, não seria mais considerado fé, mas conhecimento. Pode-se objetar que há outras formas de conhecimento, além do estritamente científico, é verdade. Um homem no meio do campo olha o céu e vê uma espessa barra de nuvens escuras se formando no horizonte, em determinado quadrante, e sabe que, apesar do sol e do céu azul que está sobre a sua cabeça, em breve, vai chover. Acerta, como de costume. Mesmo sem explicar o que acontece com aquelas moléculas de água em forma de nuvens e por que elas se precipitarão logo sobre a sua cabeça. Enfim, ele tem um conhecimento empírico. Agora, se ele disser que o Deus Sol está em luta contra os titãs das sombras, mesmo que ele acerte a previsão, o teor desse pensamento é mítico. E se ele criar rituais com o objetivo de interferir na situação ou simplesmente para venerar essas situações como sagradas, como fados de um determinado nível do universo ou até fora dele, que transcendem o nosso real, fundou uma religião.
Se eu leio e interpreto a bíblia cristã, eu tenho um conhecimento bíblico, religioso, teológico. Se eu acredito em tudo o que ela diz, eu tenho fé. A fé pode ter efeitos sobre a psique de um indivíduo ou sobre as tarefas de um grupo social. A fé, consubstanciada em fatos humanos, também pode ser objeto de conhecimento.
A Ciência construiu um universo de conhecimentos impossível de ser dominado pelo indivíduo. Assim, quando alguém fala, ainda que procure estar embasado na Ciência, precisará, aqui e ali, apoiar-se em argumentos de autoridade. Que, eventualmente, podem não passar de um belo nome de pessoa e de universidade escritos em inglês, o que não é nenhuma garantia de que um determinado artigo tenha real prestígio na comunidade científica. Quem tiver tempo, poderá checar a origem desse artigo, sua metodologia, como os dados foram obtidos e se eles dizem realmente o que eu quero que eles digam e ainda se os fatos que propiciaram a sua existência não foram alterados. A não ser que esse alguém esteja debruçado sobre o tema, de preferência com uma bolsa de estudos, não seria uma tarefa razoável. O que acontece normalmente é que consideramos a afirmação válida porque gerada por instituições válidas para tratar daquele tema. Quase fé.
Para atravessar a rua, no entanto, não podemos nos valer de citações. Precisamos, isto sim, de bom conhecimento empírico. E ao ver a incúria do mundo para com os viventes, para andar sobre os escombros da civilização, para levantar da cama contra o vento do que nos quer aplastado, para rumar à saída que não enxergamos claramente, contamos, mesmo, é com a fé. Na falta dela, teríamos ainda os químicos. Nem sempre é uma escolha, mas prefiro a primeira. Qualquer fé, a fé que encontrar no fundo da gaveta das meias ou atrás do despertador. Se possível, uma que me ligue a outras pessoas. Agradecer o presente de cada dia, sem saber a quem, ou se quer algo em troca.