Ouço as justas críticas à flexibilização das regras de prevenção à Covid-19 em pleno pico de contaminações. O modelo de afastamento social controlado adotado no RS prevê a chamada “cogestão”. Em si, ela não libera nada, não altera nenhuma restrição, mas delega ao Município, se julgar adequado, fazê-lo. Com isso alivia-se a pressão política dos municípios sobre o governo do Estado. Mas o que acontece com os municípios? Será que eles não estão com seu sistema de saúde sobrecarregado? Será que eles não se preocupam com a vida das pessoas?
As crises são cheias de descobertas colaterais. É quando senta alguém pesado que se testa o banco, é nas dificuldades que se vê a solidez de um relacionamento, é nas tragédias coletivas que aparecem os verdadeiros laços sociais que, mesmo incensados em discursos políticos ou na retórica de diretores de escolas, líderes comunitários e religiosos, claudicam na justa hora em que se faz necessária a renúncia a interesses particulares em benefício da coletividade. Nesse momento, desaparece a fibra dos líderes, dos dirigentes e dos governantes diante da necessidade de autopreservação e de manter o apoio desse ou daquele segmento social. Poucos têm a capacidade de erguer a cabeça acima dos grupos barulhentos e poderosos à sua volta para pensar no que é melhor para todos.
Não é preciso desenhar para ninguém que é na municipalidade que esse enfrentamento se torna mais difícil. É onde se dorme e onde se acorda, se leva os filhos na escola, onde nos cruzamos pela rua, onde a sua família transita, onde você vai ter que trabalhar quando não estiver mais em posição de mando. Por isso a “cogestão” é mais uma daquelas palavras bonitas que se veem na administração ou na política e que ocultam o seu real sentido, as verdadeiras relações de poder subjacentes. Ao delegar aos prefeitos, fortalecem-se os poderosos locais em detrimento do bem comum.
A descoberta colateral é que, assim como na “cogestão” da atual crise sanitária, é uma hipocrisia delegar à municipalidade o controle de outras questões em que, para agir corretamente, a Prefeitura teria que afrontar os interesses dominantes da sociedade representados em associações formais e informais ou na própria Câmara de Vereadores. Basta ver o notório fracasso no controle ambiental realizado pelos municípios.