Terminei de ler na semana passada uma publicação já de 2003, que há anos estava na minha interminável pilha. “Caspary”, um relato biográfico e apontamentos históricos feito por Hildo Caspary, famoso empresário e ativa personalidade santa-cruzense. Além da sua própria vida, da infância à adultez, Hildo dedica boa parte do seu livro ao seu pai, Adolfo Capary, e diversos parentes paternos e maternos que viveram em Santa Cruz do Sul ou têm relações com sua família e comunidade desde os primeiros tempos da colonização germânica. Na capa, está o brasão da família Caspary.
É uma edição toda ela sui generis, “caseira” (sem desmerecer), da brochura em si, os tipos gráficos, diagramação, até na sequência de apresentação, que não segue uma formatação comum a memórias. Lembra uma espécie de álbum de anotações, com recortes, fotos, além de um linguajar sem academicismos e franca referência a contatos pessoais, caso quando Caspary diz prosaicamente que confirmou por telefone uma informação com conhecidos em outra cidade.
E aí está o sabor especial do livro. Em meio às 200 páginas, muitas informações interessantes. Para quem quiser desenvolver algum trabalho sobre empreendedorismo e história do comércio em Santa Cruz na transição dos séculos XIX, XX e XXI, terá muitos detalhes e pistas para desenvolver pesquisas. Assim como da política e formação de instituições como a Associação Comercial e Industrial, a Universidade de Santa Cruz etc. Para mim, sempre “pescando” dados sobre a diversidade humana de origem étnica, cultural, social e geográfica em nossa plural sociedade, há várias pequenas pérolas no relado do “seu” Caspary.
Fala de uma família de sobrenome Cerny, tchecos (ou com origens no que seria a República Tcheca de hoje), que residia “em um chalé do outro lado do arroio”, ou seja, nos arrabaldes da cidade (p.56). Caspary menciona casamentos, ainda no final do século XIX, entre teuto-descendentes e gente vinda de outros lugares do norte da Europa, caso da Noruega ou Ilhas Friesland, de onde veio Maria Mohring, que, depois de “enviuvar”, casou-se com o norueguês Ommen Timens Behrends (p.31).
Seu pai, Adolfo, por relações próximas, chegou a participar de um casamento de ciganos, que seguidamente “acampavam com suas barracas na chamada ‘várzea’, a esquerda de quem desce a atual Avenida Independência.” Junto com indígenas, temos, então, os ciganos, outro povo itinerante marcando presença em Santa Cruz desde muito.
Fala do “extraordinário serviço prestado por Ernesto C. Iserhard, na época em que procuraram nazificar as sociedades de Santa Cruz”. Bastante envolvido nas comunidades em todo o município, Ernesto foi gerente da Cervejaria Santa Cruz de 1928 a 1944, empreendimento dos mais interessantes para mais um estudo sobre a indústria no interior gaúcho. A empresa teve expressão tal, que acabou sendo comprada pela poderosa Cervejaria Continental S.A., de Porto Alegre, num negócio cujas cláusulas impediam que fosse reaberta como cervejaria, desaparecendo diversas marcas de cervejas e refrigerantes. A origem de tal fábrica local recuaria a “pouco antes de 1868”, em Linha Santa Cruz, “talvez uma das primeiras da Província de São Pedro”.
Caspary reproduz uma carta assinada por Rudolf e Anna Gressler, escrita de Santa Cruz, em 1852, dirigida a parentes no que hoje seria a Alemanha. Foi retirada do livro “Os velhos Gressler”, de autoria de Paulo Oscar Ernesto Gressler, publicado em 1949. Há nesta carta diversas informações sobre a emigração, a viagem, a chegada ao Brasil, as passagens por Porto Alegre, Rio Pardo e, enfim, o dia a dia já nos lotes coloniais aqui na região. O tom da carta, embora várias agruras, é de muita satisfação com a recepção no Brasil, os encaminhamentos e a área de terra recebida – “mais de meia milha de comprimento”, com uma “vegetação que supera toda ideia”. No dia 21 de outubro de 1852, Rudolf e Anna já estão no que deveria ser o Faxinal do João Faria – povoado que originou a cidade santa-cruzense –, instalado no “prédio de recepção que Kläudger em Hamburgo menciona em seu contrato”. Na verdade, são construções rústicas, usando uma tecnologia provavelmente herdada dos povos indígenas e africanos, ou seja, “galpões” com cobertura de folhas de palmeiras e outros materiais naturais do lugar – algo muito provisório, mas onde o casal permanece por quatro semanas, antes de serem levados ao assentamento propriamente. Há muita expectativa de ganhos com o lote e sua produção agrícola.
Iuri J. Azeredo – Professor