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Bovarismo

Você já se sentiu sedento pelo adultério, tendo em vista que o casamento se limita à comum e corriqueira rotina do dia a dia? Ou então, quem sabe, sedento por viver uma realidade paralela mais exótica, já que a realidade do aqui e agora é de submissão à autoridade dos valores tradicionais conservadores? Sentiu-se ávido por viver uma relação mais íntima e aprazível consigo mesmo? Sentiu-se excluído do que considera a “verdadeira vida”? Já quis conhecer, experimentar, viver um outro mundo, onde a felicidade, o ideal romântico de amor, a mais querida das suas aspirações, pudessem compor o conjunto de todas as coisas reais existentes? A maioria de nós já sofreu com algum(s) desses anseios. Em algum momento, talvez, no nosso cotidiano, nos relacionamentos entre colegas, amigos, pessoas que amamos, deixamos escapar na fala, nos gestos ou no olhar essa necessidade de viver algo diferente, mais intenso, mais acalorado e aprazível.

São justamente essas algumas das características que compõem o perfil neurótico de Emma Bovary, personagem principal do livro “Madame Bovary” do escritor francês Gustave Flaubert. Tal perfil levou outro francês, o filósofo e ensaísta Jules de Gaultier, a cunhar a termo “bovarismo”, vocábulo que nos remete a esta crise passional de identidade: a luta constante entre o eu que sou de fato e o eu que eu gostaria de ser.

Trata-se do “poder concedido ao homem de se conceber como outro que não é”. (GAUTIER. 1902).

Sendo assim, as pessoas que sofrem com o bovarismo necessitam buscar e/ou dar um sentido fantasioso à realidade a que pertencem e, quando tal necessidade é crescente a ponto de se tornar uma constante, sentem-se profundamente desanimadas, melancólicas. Como defesa, podem querer transformar a si mesmas, criar mecanismos de fuga, devido às dificuldades de ser quem são (o que as leva muitas vezes a procurar nos outros o que ser). Podem ainda, investir tempo demasiado em realidades paralelas (livros ou filmes de histórias e mundos fictícios; jogos de videogame cujas realidades os tornam heróis; criam avatares e/ou outras representações de si mesmas em ambientes paralelos do ciberespaço; dormem muito, pois preferem a realidade dos sonhos…), não conseguem suportar muito tempo a realidade tal como ela é.

Até mesmo alguns filósofos foram acometidos por tais anseios cheios da perfeição imaginável. Ainda que suas manifestações não sejam de caráter exclusivamente passional, mas, sim, moral e político (as quais se inscrevem no bovarismo dito “científico”, referente ao delírio do gênio), já que fantasiaram repúblicas, sistemas econômicos, cidades ancoradas na fé, entre outros, com caráter nitidamente ideal, poderíamos dizer que suas aspirações confundem-se em essência com os anseios mais íntimos de Emma Bovary, que se resumem na vida quimérica, na vida como ela não é.

O bovarismo de Gaultier, embora numa primeira leitura possa parecer um tanto pessimista, nos ensina que a felicidade está em viver a realidade tal como ela se apresenta, cheia de alegrias e boas realizações, mas também, cheia de problemas e frustrações. Óbvio que não devemos, nessa perspectiva, viver a vida indiferentes aos males sociais produzidos propositalmente pelo homem – isso seria de uma passividade e letargia marcadas pela alienação. Também, não devemos deixar de sonhar com dias melhores, desde que o sonhador sonhe no princípio de realidade. “Viver intensamente” está mais para o “descobrir e aceitar quem somos realmente”, do que para o “delírio de querer ser algo que não se é” – é nessa via subentendida pelo bovarismo que se revela com mais propriedade a própria felicidade.