Ana Souza
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Algo que, com certeza, jamais será esquecido é a tragédia que aconteceu em Santa Maria, no dia 27 de janeiro de 2013, com o incêndio na Boate Kiss e que vitimou 242 pessoas e feriu 636. Momentos que ficaram na memória, como uma nuvem cinza pairando sobre a cidade. Mas como se diz, temos que reunir forças e seguir em frente. Foi assim que seguiram o médico socorrista Carlos Dornelles, o primeiro que entrou na boate após o incêndio e organizou a transferência dos feridos para Porto Alegre, e o estudante de Medicina, Gustavo Cadore, hoje com 42 anos, um dos sobreviventes da tragédia e que foi encaminhado para Porto Alegre.
Podemos dizer que a vida nos surpreende em diversos momentos. E o dia 20 de fevereiro deste ano será um que jamais será esquecido pelo médico Carlos e pelo estudante Gustavo. Eles se reencontraram durante o plantão do Pronto Atendimento do Hospital Santa Cruz. Duas vidas que se cruzaram novamente!
No livro ‘Todo dia a mesma noite. A história não contada da Boate Kiss’, da escritora Daniela Arbex. Há relatos de ambos. Na parte onde fala de Gustavo Cadore… ele estava na área vip quase em frente ao palco quando o fogo teve início. Acreditava que se saísse em meio ao tumulto acabaria pisoteado… Após um estrondo, a boate ficou às escuras. Gustavo perdeu a noção de onde estava. Movido pelo instinto de sobrevivência, usou de toda a energia que lhe restava, cambaleante conseguiu cruzar a entrada. Na Rua dos Andradas sofreu um apagão. Minutos depois, ao retomar os sentidos se viu sentado no meio-fio, desnorteado, chorando muito… (parte do relato contido no livro).
Luta e motivação
“Faz um tempo da tragédia e, digamos, que consegui superar bem tudo que passei”, destaca Gustavo. Ele relembra que ele e um amigo foram para a boate naquela noite. Era cerca de 2h da madrugada quando chegaram ao local. Na parte de fora da boate já não exista fila. “Quando entramos percebi que estava muito cheio. Eu havia comprado uma bebida. Falei que iria tomar e ir embora, mas passou um tempo fomos para uma área vip. Passada cerca de uma hora, vi começar o fogo, achei que iriam conseguir apagar o incêndio. Não havia fumaça na hora, mas o ambiente começou a esquentar. Quando saímos da área vip, faltou luz. Acabei caindo e foi um desespero para conseguir levantar e tentar sair. Quando tentei respirar a fumaça entrou rasgando o pulmão. A temperatura estava muito alta, ali tive noção da gravidade da situação. A porta era pequena para sair todo mundo. Consegui ir até a parede e atravessei toda a boate. Quando cheguei na porta estava trancando foi neste momento que me despedi dos meus pais. Pedi desculpas e tive a certeza que não conseguiria sair, pois a situação era desfavorável. Mas pedi a Deus que me ajudasse. Vi uma luz e uma distância de cerca de dois metros da saída. Era minha chance de sobreviver.”
Cadore estava preparando sua defesa da tese de doutorado em Medicina Veterinária, que ocorreria em março daquele ano. “A vontade de cursar medicina surgiu quando estava no sexto semestre de Veterinária, conclui a graduação mas, queria cursar medicina. A tragédia me incentivou a seguir nesta ideia. Entrei no curso de Medicina da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2020 e que tem convênio com o Hospital Santa Cruz. Era uma meta que queria muito colocar em prática. Recebi muito apoio de meus familiares e amigos. Lembro que, como paciente da UTI, no dia do incêndio estava muito confuso mas, ao conversar com os profissionais da saúde, era muito significante e foi o diferencial para seguir a carreira de médico.”
Reencontrar o doutor Carlos foi sensacional, diz. “Há cerca de um ano fiquei sabendo que ele havia feito o encaminhamento para Porto Alegre na época da tragédia, mas ainda não o conhecia pessoalmente. Este ano nos reencontramos no Pronto Atendimento. É uma honra poder aprender com o médico que me ajudou no dia do incêndio, vou levar para o resto da vida e sou muito grato a Deus por colocar pessoas certas no meu caminho!”.
O livro da escritora Daniela Arbex tem uma abordagem muito clara de tudo. “Ela foi para Santa Maria e a forma que ela entrevistava era calma e serena. Todo o pós tragédia foi muito difícil de superar, principalmente nos primeiros momentos. Vidas abreviadas e um espaço que ficou vago. A maioria era muito jovem.”
Gustavo destaca que devemos dar valor as pequenas coisas. “É nossa rotina e quando somos retirados de maneira bruta de algo, percebemos a importância disso tudo. Tive muito sorte em conseguir sair vivo! Devemos acreditar nos sonhos e seguir em frente com o que o coração diz!”
A emoção
Conforme o médico Carlos Dornelles, foi um misto de alegria e de muita emoção. “Esse mundo dá muitas voltas e ter a oportunidade de reencontrar o Gustavo foi sensacional! Algo que eu nunca imaginei que pudesse acontecer. Tem um valor muito significativo, pois poder ajudar na formação acadêmica do Gustavo é um grande prazer. Tenho certeza de que ele será um excelente médico!”
O médico também falou sobre a espera pela justiça. “É revoltante saber que 11 anos se passaram e a morosidade da justiça Brasileira ainda persiste, deixando vítimas e seus familiares em uma situação angustiante e desesperadora. É impossível aceitar essa situação. Como todos, clamo para que todo esse sofrimento termine e os réus cumpram suas penas…”
Trabalhar ao lado de alguém que você ajudou a salvar, para Dornelles é incrível. “Saber que alguém que passou na sua linha de atendimento em situação gravíssima e sobreviveu devido ao esforço de diversos profissionais. Hoje compartilhar plantões e conhecimento com ele não tem palavras. É muito gratificante presenciar o crescimento e a realização do sonho de ser médico do Gustavo”, destacou.
A vida muitas vezes nos surpreende, e este é um exemplo. O médico destaca que é o seguimento de uma história de sobrevivência e de muita persistência. “Uma luta constante que passa uma clara mensagem de superação e desejo de vitória. Um exemplo de que o trabalho coletivo traz resultados concretos e que o destino nos proporciona surpresas agradáveis.”
“Essa é a foto mais linda que você vai ver”
Daniela Arbex escreveu no Instagram: “Carlos Dornelles, médico de Santa Cruz, foi o primeiro socorrista a entrar na Kiss, em 27 de janeiro de 2013, após o incêndio. Ele também participou do atendimento dos feridos e organizou toda a transferência por aerotransporte das vítimas mais graves de Santa Maria para Porto Alegre. Ao todo, 57 feridos foram levados para a capital gaúcha. Toda a operação ficou sob a coordenação dele. Um dos primeiros nomes da lista era do doutor em veterinária Gustavo Cadore que teve quase 40% da superfície corporal queimada. Ele foi uma das últimas pessoas a sair da Kiss com vida. Ficou nove dias em coma no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. Os dois são personagens do livro ‘Todo dia a mesma noite” e estão retratados na série baseada no meu livro que estreou ano passado pela Netflix.
Depois da tragédia, após lutar muito tempo com as saquelas daquela noite, Gustavo decidiu mudar o rumo da sua vida. Quis estudar medicina e devolver para a sociedade todo o cuidado que recebeu dos médicos e profissionais de saúde. Eu estava em casa quando recebi uma foto enviada por Dornelles. Onze anos depois da tragédia da Kiss, Gustavo, que está prestes a se formar, e o médico Dornelles, fizeram o primeiro plantão juntos, chorei de emoção e gratidão por ter conhecido esses dois homens tão especiais e gigantes. Não há nada mais simbólico do que a foto. Ela simboliza a esperança no presente e a resiliência humana. Diz sobre a dor que dilacera, mas sobre a capacidade que o ser humano tem se agigantar diante de uma tragédia. Dornelles e Gustavo estavam profundamente emocionados nas mensagem que me enviaram durante aquele plantão. E eu fiquei emocionada. Pensando na sorte que os pacientes terão ao serem tratados por médicos tão humanizados. Ganhamos nós e a medicina”.