Há muitas coisas em falta no mundo. Muitas imagens nos mostram isso, diariamente, nos programas jornalísticos da TV e nas redes sociais. A criança com a mão estendida pedindo algo para comer; a casa que desmorona na encosta depois do dia de chuvas; a lama que corre livre e solta na pequena cidade mineira após o estouro da barragem; a floresta que queima sem peias; o urso polar com o olhar perdido no horizonte de água que deveria ser neve; o calor que mata os velhinhos dos pequenos apartamentos de Lisboa; a violência das pessoas que deveriam proteger as pessoas; o furto de dinheiro nos prédios mal acabados, rachados antes de serem entregues; a vastidão dos pastos que pouco antes eram exuberantes matas de bichos e de índios.
Essa lista de tristezas quase não tem fim. Cada lembrança causa um vazio que também não tem palavra que dê forma. E causa um tipo de raiva, espumosa, com um cheiro que espanta. Por isso; aprendemos a dizer que vivemos em um tempo “tóxico”. Tóxico é uma palavra emprestada, já meio gasta, dos livros de química, biologia, das embalagens de produtos, dos avisos dos pais quando éramos menores sobre os perigos das drogas. Tóxico agora é o ar, a floresta, a política, as pessoas. Essa atmosfera é um desafio não mais somente para nossos pulmões, mas para nossa alma. A contaminação é uma realidade para todos.
Mas o que falta para que o que falta no mundo seja suprido? Terá havido um tempo no qual palavras como “liberdade e esperança” tiveram a força de uma manhã de primavera? Quem crê nelas, hoje? Alguém deixaria emprego e família e colocaria a vida em risco por elas?
Fica claro que vivemos em um tempo de esgarçamento da esperança e que há não mais do que um resto roto e tênue de tecido histórico a nos prender ao tempo no qual as palavras que fundamentaram a ideia de integração social foram construídas. O pensador Karl Jaspers chamou esse tempo de “época axial”, quando personagens como Buda, Confúcio, Homero e os profetas bíblicos produziram cenários e ideias de uma vida possível entre as pessoas do mundo.
Acredito que essa herança de valores e pensamentos precisa ser procurada e resgatada, como um baú que ficou esquecido no sótão e que guarda os segredos para curar as feridas de uma família em crise. Lá, entre os textos, reflexões e ensinamentos, estão as palavras que não achamos para entender o que se passa e como isso pode passar. Como afirma Habermas, essas energias ainda podem fazer crescer a solidariedade entre os seres humanos, afinal, foram dessas “reservas semânticas” que surgiram os grandes acordos que sustentaram o Ocidente, bem ou mal, até aqui, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo. Por que não imaginar que elas ainda são capazes de nos guiar coletivamente?
Há, na fronteira entre a fé e o saber, campos do sagrado e do pensado que se alimentam mutuamente e irrigam as sociedades. Nesses campos é que devemos voltar a arar, urgentemente. Desses campos virão as palavras que faltam e que salvarão nossos filhos.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo