Durante os anos 80, minha irmã calçava seu all star preto e de cano alto sempre que saia de casa para passear com suas amigas. Aquele tênis estava na onda. Só não pra mim, porque o máximo que consegui, por ser criança e ela adolescente, foi um daqueles “kichutes” que sapecavam os pés quando íamos pelo asfalto até a escola, ou quando jogávamos na quadra pelando de quente do Polivalente. Verdade, ele era feio, aliás, era muuuuuito feio, mas também estava na moda, ora bolas! Tranquilo, não se podia escolher muito naquele momento, já que ela trabalhava desde cedo e eu, como disse, era uma criança dependente de pais que não ganhavam grande coisa de salário – orçamento apertado ajudado pela dona do all star preto, obviamente.
Não quero parecer um daqueles titios que sempre dizem “no meu tempo era melhor”, pois não era. Para ser franco, nem mesmo nós éramos nós mesmos, éramos outros dentro de tempos também outros e que só se repetirão em nossas memórias quando e se evocados. No que advirto: a memória só lembra o quer e as histórias podem variar de uma pessoa para outra, que são outras de outras delas mesmas… como disse logo ali em cima. Então, se perguntar para a “Nana” (é assim que a chamo desde que aprendi a falar) poderá perceber variações nas narrativas. Há muitos anos 80 dentro de cada uma das que foi, e dentro de cada menino que fui.
Pois é. Pode-se saber muita coisa pelos livros que uma mulher, que um homem lê. Como também é possível saber pelos sapatos suas inclinações. Eu mesmo, naquele fascínio infantil de querer ser inconscientemente como minha mana, uma vez adulto, passei a usar só, adivinhe…, sim, all estar, inclusive tenho seis pares. Quanto ao kichute, não dava mais. Ele me queimava muito, pois era feito de borracha, parecia que de pneu…
Lembro certa vez lá em casa, em um encontro entre as meninas de all stares, que resolveram gastar o LP dos Menudos de tanto que ouviram. Eles eram a febre do Brasil feminino-adolescente daquele pedaço dos 1980 e tantos. Por baixo da cortina da porta via os tênis pulando e na imaginação via o disco arranhando na agulha do tocador, este se misturando aos gritos e à histeria das moças.
Era sábado, isso lembro bem, e no sábado para uma família católica vera-cruzense era dia de perder o Chacrinha e ir para a missa ouvir o sermão do padre e os outros adultos fofocando sobre as roupas e sobre as vidas de fulano e sicrano. E tudo isso durante a cerimônia. Assistir aquilo com meus pais era missão só minha (de novo) por ser criança, menos para as meninas, que só iam quando bem queriam. Naquele sábado, por exemplo, ficaram a tarde toda ouvindo aqueles Menud… Ah, como eu desejava também não precisar ir. E é sério, nem o próprio Jesus Cristo aguentaria aquelas missas, aquelas pessoas… Mas nesse dia aproveitei a balburdia para pedir discretamente uma coisa a Ele. Olhei para a cruz e desejei:
“Jesus, quando eu crescer permita que eu possa usar só all star e ser livre para ir onde e se eu quiser. Os kichutes não são de Deus, são do Diabo, pois eles queimam toda a sola dos meus pés – assim não consigo me libertar. Mas não quero ser abusado, então peço só mais uma coisa: se não me permitir o all star, mande ao menos uma moda que não me destrua tanto os pés, Senhor. Por favor! Amém!”