Ei! Acorda, por favor. Vamos sair. Sim, eu sei que está escuro, que é madrugada, mas é quando o mundo dorme que a vida sonha. Vem comigo. Esta roupa? Ótima. Simples, mas elegante, e isso te traduz, e tudo o que te traduz me convence. Não, o cabelo precisa um toque. Assim, ó… pronto! Gira, por favor. Isso. Linda! Agora um toque leve de maquiagem, sem deixar que pesem teus traços, mas que valorizem teus lábios, teus olhos, as covinhas do teu sorriso largo. Não, não, não faz isso. Guarda esse perfume. Quero sentir o perfume natural da tua pele quando, lentamente, cheirar tua nuca.
Vamos sair na noite estrelada. Quando parece que quase tudo dorme, vamos chegar perto de quase tudo e perceber que quase tudo pulsa sem pressa, que esse é o ritmo natural da vida. Vamos visitar os jardins. Sentir o cheiro dos jardins na noite escura, essa linguagem das flores, uma conversa de quem tem alma, que não vale só pela cor das pétalas. Vamos colher uma flor escolhida pelo perfume na noite negra. Pelo perfume e pelo toque. Pelo veludo, pela camurça das pétalas. Vamos, atentos, ouvir o barulho dos insetos. O anúncio dos grilos, a batida de asas dos besouros, dos mosquitos até. Vamos ouvir as folhas das palmeiras embaladas pelo vento. Depois vamos ouvir o silêncio. O silêncio das formigas, dos cogumelos, das borboletas e lagartas, o silêncio dos pássaros dormindo.
Mais tarde vamos ver os mesmos pássaros que dormiam reunirem-se em bando e voarem perfilados, lado a lado, num arranjo em ângulo, rasgando o céu da noite escura. É o instante em que estes mesmos pássaros abrem o velcro da madrugada descortinando a aurora, fazendo surgir um clarão no horizonte pintado pela aquarela de Deus. Este momento mágico é quando o mundo sorri, e o ângulo formado pelo voo dos pássaros são as covinhas na face do mundo, semelhantes às do teu sorriso largo.
Tu lembras aquela flor que colhemos no jardim, que escolhemos pelo perfume e pela camurça das pétalas? Era noite escura. Agora, no sol da manhã, podemos vê-la. Eu havia colocado ela nos teus cabelos, tentando fazê-la de adorno em ti. Tentei te enfeitar, mas foste tu que enfeitaste ela. A flor ganhou cor e sentido.
Ei! Acorda, por favor. Vamos sair. Sim, eu sei que é dia claro, que já é manhã, mas é quando o mundo acorda que a vida não sonha. Já estás vestida. Esta roupa? Ótima. Simples mas elegante, e isso traduz os muitos jardins que brotam, crescem e florescem em ti.
Tu lembras o ângulo formado pelo voo dos pássaros em bando? Lembra as covinhas do mundo no sorriso da vida? Pois quando um céu de matizes várias tiver anunciado a chegada do pôr do sol, novamente os pássaros hão de voar em bando. Talvez eles pensem que as covinhas do sorriso do mundo são cálices e, sem derramar, vão lá tomar cores e inspiração num crepúsculo mágico e inspirador. Há uma semelhança e uma diferença entre eu e os pássaros. A semelhança é que, como num cálice, busco inspiração e tomo tudo nas covinhas do teu sorriso largo. A diferença é que ali eu me transbordo e te faço transbordar-se. Transcender-se como num sonho.
Acordei suando. Era um sonho? Vem comigo, só um pouquinho. Vou até a janela ver se há bando de pássaros voando. Olha! Eles estão vindo. Consegues ver? Fiques assim… Agora eles voam em ângulo como os ângulos das covinhas do teu sorriso largo. Sintas eles… estão chegando… Psiu! Agora chega de palavras, eles vão tocar o céu… o céu da tua boca.