Um mamífero bípede que não seja guiado por alguma moralidade sequer pode ser chamado de humano. Seja ela no sentido de uma orientação interior do agir ou relativo à assimilação de valores sociais, “êthos” ou “éthos”. É um sentimento fundador do humano. Em sua observação do mundo, no entanto, ele pode perceber que a natureza não tem esse mesmo comprometimento. Correntemente esquecemos essa constatação e lançamos mão da moral para julgar universos que são alheios a ela. Antropomorfizamos o mundo ao redor causando distorções no relacionamento com animais e com a natureza em geral e até infantilizamos a fé.
O momento que estamos vivendo é rico em dilemas morais. É uma situação limite em que pequenos atos, anteriormente executados sem reflexão, hoje envolvem discernimento e até algum cálculo moral. O que fazer diante de uma epidemia que não tem potencial para exterminar a raça humana, mas causa baixas pontuais em especial sobre um contingente humano caracterizado pela idade avançada ou comorbidades e talvez até aspectos étnicos ou de classe. Mesmo quando não pensados, nossos atos engendram uma moralidade subjacente.
Sobressai-se a moral “bio-específica-evolucionista” – designação inventada para o momento – para a qual é melhor que priorizemos a espécie, sua evolução e economia. Desta maneira, não se deve lutar contra a expansão do vírus, mas abrir espaço para que a população, a partir de suas próprias potências biológicas, reaja e se torne resistente a ele. Faz sentido, apesar das presumíveis perdas humanas. Aliás, faz mais sentido ainda com as perdas humanas, visto que serão preferencialmente daqueles que pouco contribuem para a economia ou os mais frágeis, que provavelmente consumiriam a poupança das famílias para sobreviver. Tem lógica, mas talvez não resista às analogias, onde se incluiria praticamente toda a medicina que não for direcionada às pessoas em condições produtivas. É o “vai-morrer-quem-tiver-que-morrer”.
No outro extremo estaria a moral humanista, para quem toda a vida humana é um valor absoluto e deve-se lutar por ela com todas as forças. Pode-se dizer que o cristianismo, o genuíno, que se guia pelo Novo Testamento, inclui-se aqui. Aparentemente muito linda, também tem seus problemas, pois concentrar todos os esforços da sociedade em preservar a vida de um grupo restrito, diante da finitude dos recursos, pode deixar desassistida e causar danos a toda uma coletividade e prejudicar a vida de muitos, com efeitos em cadeia difíceis de precisar, como por exemplo o suicídio de um desempregado ou a depressão causada pelo isolamento.
São dilemas difíceis sem solução única e muito menos perfeita. Muito mais fácil é o cálculo do vírus, para quem todo o contato humano, legal ou ilegal, moral ou imoral, produtivo ou não produtivo, de direita ou de esquerda, está do mesmo lado da equação. Ali se somam ou se multiplicam o retorno às aulas presenciais com as aglomerações festivas inconsequentes, o esforço de um pequeno empresário para sobreviver com a falta de cuidados e de educação dos clientes, o culto religioso com uma rodinha de baseado. Para o vírus é tudo a mesma coisa. Do outro lado dessa equação em que nada se subtrai, a incógnita são as oportunidades de contágio.