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Alcoolismo: é possível vencer

Luciana Mandler
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Mário Kist, hoje com 60 anos, sempre foi uma pessoa que teve tudo. Tudo era fácil. Não lhe faltava nada. Sempre teve facilidade para se comunicar e escrever. “As facilidades que a vida me oferecia fizeram com que eu visse a vida muito fácil”, relata. Para Mário, é aí que está o perigo. “Eu não percebi a tempo e paguei um preço amargo. Eu não me cuidava”, recorda.

Santa-cruzense descreve que no descer do poço, a cada gole, foi se fantasiando de orgulho. Foto: Rolf Steinhaus



Passou a amar as festas com amigos. Para ele, era preciso festejar, pois viver era fácil. “A vida era um surfe. Estar sempre na crista da onda e deliciar-me com a fantasia de estar bem. Estar de bem com a vida, com os amigos, comigo”, recorda.

Como não se cuidava, usava de justificativas trágicas, começou a beber. Como poderia festejar sem aperitivos, cervejas, vinhos e todos os ‘parentes’ da família do álcool? – dizia para ele mesmo. “Minha vida era minha eira e meu álcool era a minha pá. Na minha eira e com minha pá, eu fui cavando meu poço”, revela.

A cada pazada no poço, Mário lembra que foi se afundando. A cada gole foi se lavando as facilidades da vida e levadas ao infortúnio. “Eu era uma pessoa alegre e passei a ser triste. Era trabalhador e passei só a lembrar o bom do passado. Era procurado e passei a ser rejeitado. Era amado e passei a ser objeto de piedade. Era lembrado e passei a ser esquecido”, conta.

O santa-cruzense descreve que no descer do poço, a cada gole, foi se fantasiando de orgulho. “O orgulho me dominou tanto que tentei vender uma imagem de humilde”, diz. “Eu, que era uma pessoa acreditada passei a ser desacreditada. Pouco a pouco fui perdendo minha dignidade. Passei a fazer o que era preciso só por fazer. Meus atos e comportamento foram se despindo de toda qualidade”, relata.

Para Mário, viver uma vida boa passou a ser rotina e não percebeu que a rotina o matava impiedosamente. “Fui sentindo que meus generosos goles eram meu perverso algoz, o carrasco. De meu amado carrasco, o álcool, eu fui recebendo duras chicoteadas. Contudo, não me convencia que o álcool me fazia derrotado”, enfatiza. “Para vencer minhas derrotas físicas, morais e espirituais, bebia mais”, acrescenta.

Como sempre foi vencedor, acreditava que não poderia passar então a perdedor. “A cada perda, mais álcool e quanto mais álcool, mais perdas”, lembra. “Os outros passaram a perceber isto. Só eu não. Os que me amavam, buscavam socorrer-me, mas os socorros oferecidos a mim, os recebia como reprimenda e eu não podia ser repreendido. Os que me amavam buscavam salvar-me, mas para mim a salvação que me era oferecida era prepotência de meus amigos por serem eles juízes impiedosos”, aponta, ao avaliar como se sentia naquele momento.

Então, Mário se questionava: o que querem os outros? O que têm eles a ver com minha vida? Por que não cuidam de si? Que mania olhar a vida dos outros. E assim por diante. Na verdade, percebeu que os amigos tinham razão: estava mal. “Só o doente, eu, não percebia que a profundidade de meu poço me era asfixiante”, analisa.

Aquele homem que admirava e amava a vida passou a ter ódio de viver. Passou a não gostar de si mesmo. Fazia tudo por fazer e pensava que fazia bem feito e ainda, pensava que era um favor para os outros e via os outros como mal agradecidos. “A minha vida passou a ser um inferno”, frisa.

O bom parceiro era o álcool, que anestesiava toda a realidade. Realidade esta que escapava entre os dedos, perdendo o controle e o domínio da situação. Pouco a pouco o santa-cruzense foi se afundando, mas a bebida não podia mais faltar. Sua solidão era povoada pelo álcool. “Com o álcool pensava que dominaria, mas este que me era único parceiro fiel passou a ser meu inimigo implacável, dominador”, completa.

Esta é a história de Mário Kist, que neste ano completa 23 anos se recuperando do alcoolismo. No Brasil, há um dia especial para o Dia do Alcoólatra Recuperado, celebrado em 9 de dezembro, em alusão a todos aqueles que conseguem se recuperar da dependência do álcool. Esta é a droga lícita mais consumida em todo o mundo e a que mais afeta a população. O álcool é aceito socialmente e de fácil acesso às pessoas.

Em muitos casos, há quem se perde em meio ao consumo de bebidas alcoólicas. No fundo do poço, Mário criou um Deus para servir. Porém, para este Deus pedia que o matasse, enquanto na verdade, ele mesmo estava morrendo aos poucos. “Mas o Deus que me deu a vida e que me amava e ama incondicionalmente usou de todo o seu amor para me salvar”, enaltece com o coração cheio de gratidão.

Na vida matrimonial, depois de muita prepotência, muitas pessoas se empreenderam a salvar Mário. “Foi preciso Deus tocar nos corações destas pessoas, que pusessem a recompor o homem que perdera sua dignidade, um pai ausente que tinha o estigma de marido, pois na minha consciência eu ainda era bom, quando na verdade era um obstáculo na felicidade familiar”, sublinha.

Naquela altura, Mário não aguentava mais o peso da cruz que carregava, feita de muitas garrafas e tendo como pregos o álcool. Foi então que familiares e amigos o levaram para tratamento. Foi em novembro de 1997, que ao ser internado na Utravarp, hoje Comunidade Terapêutica Recomeçar, em Santa Cruz, que começou a enxergar a dimensão do seu problema.

Lá, os dias foram passando e o santa-cruzense começou a se sentir só. Pensava no que fazer, para onde ir, como retornar ao convívio habitual depois de tantos danos e ainda, o que os outros iriam pensar dele. Passou a sentir vergonha. “Comecei a brigar com meu Deus. Assim, brigando, o encontrei e então comecei a me encontrar e encontrar os verdadeiros amigos, sentinelas fieis do meu viver. Aceitei e hoje sou feliz”, alegra-se ao relatar sobre os momentos difíceis que precisou enfrentar.

Após sua internação, Mário encontrou um novo sentido para sua vida. Na Comunidade Terapêutica passou de paciente a consultor/monitor auxiliando outros dependentes de álcool e drogas, inclusive, sendo presidente da CTRecomeçar, função que exerceu entre os anos de 2017 e 2018.

“Hoje, a minha vida tem uma dimensão nova, etapa da minha vida que queridos amigos fazem parte. Uma vida bonita, vibrante, cheia de entusiasmo, apelo ao cuidado, ao serviço, à doação, pois tudo ganhei”, comemora. “Há dias quando abro a janela, a porta e vejo que meu Deus pendurou novamente o sol para mim lá no céu nascente, escuto-o dizer: ‘Ei, Mário! Creio em ti. Dou-te mais um dia’”, acredita.

Com um dom especial para os trabalhos manuais, Mário trabalha hoje com entalhes de madeira, confeccionando verdadeiras obras de arte. E foi atrás deste trabalho que conseguiu adquirir seu barco para ser usado em seu hobby: pescar. Como gratidão à comunidade, exerce ainda a função de diácono permanente na Paróquia Santo Antônio.

“Fiz muitos sofrerem com meu alcoolismo ativo, mas, hoje, como um alcoólatra em recuperação, creio que já pelo fato de não fazer mais os outros sofrerem, por eu não mais sofrer, pelo menos não sou um estorvo”, reflete.

Mário acredita que Deus lhe deu a oportunidade de juntar os cacos que sobraram de sua história sofrida de destruição quando idolatrava o álcool e o resultado desta reconstrução é ter felicidade de estar junto daqueles que ama, onde recebe carinho, abraço e amor. “Agradeço a Deus e toda minha família que acreditaram em mim e me ajudaram a ser aquele que sou hoje, homem com dignidade”, finaliza.

Texto de Mário Kist adaptado para esta publicação.