O Ministério da Saúde, por seu interino militar, não-médico, editou no último dia 27/08 a Portaria nº 2.282, dispondo sobre o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez, no âmbito do SUS.
Contaminando o Estado, que deveria ser laico, com convicções morais e religiosas, o propósito da medida, longe de traduzir preocupação com a saúde da mulher violada ou de quem está sendo gestado, ou representar gesto de cuidado e acolhimento, nem mesmo servindo para orientar e esclarecer sobre os riscos do aborto e do parto (maiores, a depender da circunstância); indisfarçavelmente quer somente criar embaraços ao acesso ao aborto legal nos casos de estupro, criando constrangimento à vítima.
Afinal, não é dado desconsiderar o número significativo de crianças e adolescentes envolvidas e o alto percentual de abuso intrafamiliar e as repercussões conaturais à denúncia do ofensor, quer pela possibilidade de ele ser preso, quer pela amplificação do risco à integridade física e psicológica da ofendida, quer pela possibilidade de estigmatização e abandono.
Para além de serem forçados notificar o caso à autoridade policial e preservar eventuais fragmentos materiais do delito de estupro (p.e. do feto ou embrião), assumindo função de segurança pública, estranha aos profissionais da saúde, quebrando o dever de sigilo; os médicos deverão oportunizar à gestante que os visualize, se desejar, por meio de exame de imagem. Somente após percorrido este itinerário é que estarão autorizados a realizar o procedimento.
Como se não suficiente, o momento escolhido para promover a modificação normativa não poderia ter sido mais infeliz.
Nem me refiro ao recente episódio no Espírito Santo, marcado pela ação irracional e intolerante de lunáticos e fanáticos, falsos defensores da vida, seduzidos pela violência e enamorados do armamentismo.
Em meio a uma pandemia, com necessidade de medida preventiva de isolamento social, no curso da qual aumentaram os casos de violência de gênero de toda ordem, inclusive de natureza sexual, havendo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que revela um crescimento no patamar de 40%, o sistema de saúde tem registrado também uma significativa maior procura pelo aborto legal, ao passo que o sistema policial, paradoxalmente, não é informado sobre crimes de estupro na mesma proporção.
Estes elementos permitem identificar as dificuldades enfrentadas pelas vítimas para denunciar.
O aborto legal e terapêutico é um direito e como tal deve ser facilitado, não criminalizado. Maternidade requer desejo e liberdade. Não pode ser imposta, sobretudo quando traumática.
A insistência em levar a cabo uma gestação nesta condição encerra indevida intromissão do Estado, um verdadeiro assédio, violando a autonomia da mulher no campo dos seus direitos reprodutivos.
Um evidente esforço pelo controle sobre o corpo das mulheres.
Uma vez mais faltam sensibilidade, empatia e ciência e sobram obscurantismo, preconceito, exclusão e desprezo.
Nada de novo nessa agenda ultraconservadora, a qual, ao mesmo tempo em que rejeita qualquer investimento na saudável e imprescindível educação sexual, fomenta fantasias como kit gay e outros quetais.
Mais um cruel retrocesso a ser no futuro reparado.