Havia prometido a mim mesmo que não tornaria a falar sobre o tema Covid-19. Quem gosta de escrever, e o faz com regularidade, deve redobrar os cuidados para não se tornar chato e repetitivo ou, ao menos, ter presente a advertência de Saramago: “O trabalho de convencer é uma tentativa de colonização do outro”. No entanto, impossível silenciar.
Passados nove meses desde que implantadas as primeiras medidas de isolamento social, vivenciamos um quadro muito mais agudo que aquele que determinou as restrições e contamos 180 mil pessoas mortas. Neste universo, há mortes estatisticamente projetáveis, mas é inquestionável que um percentual significativo dessas poderiam ter sido evitadas. Milhares de famílias poderiam ter sido poupadas do luto. Dezenas de milhares não precisavam estar tratando sequelas. Vários fatores convergem para essa chacina. Há muitos responsáveis.
Temos o governo federal que não coordena e não planeja. Um presidente que nunca encarou de frente o problema, ao reverso, virou as costas para ele, promovendo toda sorte de sabotagem, boicotando iniciativas de governadores e até mesmo de ministros seus. Mobilizou seguidores e nunca os censurou quando exerceram pressões criminosas contra o STF. Em ato de curandeirismo, inventou soluções medicamentosas, como panaceia, constrangendo profissionais da saúde e desqualificando cientistas. Suas declarações buscam negar, desdenhar, debochar e provocar cizânia. A preocupação de salvar vidas e a empatia não o acompanham, tudo é arquitetado para fomentar a disputa política, para agradar segmentos que ainda o apoiam, para macaquear Trump.
O poder econômico também não cumpriu a parte que lhe cabia. Seus movimentos sempre foram e continuam sendo para dar fim às restrições, mesmo que todos os indicadores mostrem o quanto elas são imprescindíveis. Em nome do mantra “novo normal” e “abertura com todos os cuidados” nem sempre seguidos -, grassa a permissividade. Toda a atividade econômica (de risco, sabe-se!) passa a ser vendida como essencial. Para salvar a economia, assiste-se o naufrágio da saúde. Abusa da retórica de inobservância das regras por uns, para justificar cancha aberta para si, como se um erro fosse alvará para outro.
Foram tamanhas as pressões, que os governos estaduais e municipais, progressivamente, acabaram capitulando. Quanto mais cediam, mais viu-se disseminar o coronavírus. Quanto mais cresce o número de infectados, quanto maior é a taxa de ocupação de leitos, mais protestos por flexibilização.
Não tendo como fazer frente aos fundamentos científico-sanitários, recorrem à desqualificação dos servidores públicos mobilizados no enfrentamento da epidemia. Atribuem ao “salário certo no final do mês” a motivação do agir deles – quando não seguida da acusação de falta de empatia.
O argumento é raso, por invídia, e revelador da mais absoluta ignorância do que é o espaço público, quais as responsabilidades dos que nele operam e da dimensão das notas distintivas entre ele e a seara individual, privada.
Também dos atores políticos o momento histórico exigia mais consciência social. As oposições, por cálculo eleitoral, reiteradamente constrangeram os gestores, jogando-os contra a população, vários prometendo, por inconsequentes e irresponsáveis, se eleitos, ‘abrir tudo’, ‘liberar geral’. Questão de saúde pública passou a ser manejada a partir de interesses não coletivos e não superiores.
A população – manipulada, anestesiada, sem educação e cultura para entender a gravidade do tema e, então, adotar postura de autopreservação, desafia a morte, jogando-se em aglomerações, festas clandestinas, resistindo ao uso de máscaras, tentando, por negação e imaturidade, levar uma vida normal.
E assim chegamos ao dia de hoje: batendo recordes diários de novos casos de infectados, UTIs lotadas, sem previsão segura acerca do início da vacinação, sem logística para acondicionamento do material, seringas e algodão insuficientes, a economia colapsada e os auxílios estatais minguando.
Não nos iludamos, imunização em massa, no melhor dos cenários, somente no princípio de 2022. Não basta uma dose, talvez duas não sejam suficientes. Há que ter vacina para todos e há que lograr vacinar quase 200 milhões de pessoas. Gostemos ou não, por muito tempo ainda teremos que nos cuidar e cuidar dos outros. Não se trata de imposição; sim, de necessidade.