“Age sempre de tal modo que trates a Humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, como fim e não apenas como meio” (Kant). Com aproximadamente essas palavras, o pensador iluminista parecia decretar aos humanos um destino de dignidade e o direito à boa vida, aquela em que trabalho e existência não são valores conflitantes.
O avanço industrial, no entanto, mostrou na concretude das relações de trabalho algo completamente oposto. A servidão medieval pariu o operariado como a escravidão pariu o peão e a empregada doméstica. O senhor quer o servo não porque o ama, mas porque é necessário na tarefa de roer o mundo e lhe produzir riquezas e condições de vida. A indústria e a classe operária não foram fruto de uma cooperativa autogerida de pessoas livres. Elas foram a empresa de um novo senhor em novas relações de trabalho baseadas principalmente na evolução tecnológica.
No começo, nem havia tanta tecnologia assim. Os ganhos de escala eram produzidos em grande parte pela organização do processo em um só lugar, a separação entre ambiente de trabalho e o familiar, a divisão das tarefas e a racionalização dos métodos.
Espaço, causalidade e tempo são dimensões através das quais a mente humana percebe o mundo. A indústria concentrou o espaço da produção; a relação causa-efeito foi fragmentada nas sucessivas segmentações do trabalho em tarefas cada vez mais repetitivas que ofuscaram ao novo servo o domínio total do trabalho até o resultado final, o produto, cuja contemplação anteriormente dava significado a todo o processo. Alienado em seu labor, ele ainda vê, com certa dramaticidade, o controle do seu tempo ser entregue às máquinas que compõem a linha de produção. Momento tão bem representado no velho filme do Chaplin.
Ficou difícil separar o homem das outras peças do parque de máquinas cujos trejeitos ele passou a imitar. As emergências do humano passaram a ser vistas como uma predisposição natural à indolência. Claro que isso vale apenas para os pertencentes à classe vista como insumo remunerado. Mas é curioso que, após tantas mudanças no mundo do trabalho, ainda resta internalizada em muitos de nós essa necessidade de agirmos como máquinas.
Homens é que sois, parecem dizer os avanços tecnológicos que – primeiro aos poucos, depois vertiginosamente – substituem a mão-de-obra humana, não só em todas as tarefas braçais e repetitivas como em cálculos, funções de controle e tantas outras para as quais anteriormente demandava-se a mente humana. Essa sensação de que a máquina usurpa o lugar dos humanos pode ser simplesmente a máquina ocupando a sua função, desempenhada interinamente pelo homem desde a revolução industrial.
O que acontecerá com o contingente humano que rapidamente deixará de ser “meio” eficiente? Será que, enfim, chegaremos ao estágio preconizado por aquela máxima iluminista, ou na verdade rumamos para um apartheid incontornável?