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A dogmática de um regime

Caros jovens, vamos por um momento nos imaginar vivendo em uma realidade em que o Estado prescreve o inconcebível como lei, em que toma de casa e com violência um de nossos amigos sem que seja sequestro, em que mata um de nossos colegas sem que seja assassinato. Vamos nos imaginar nesse Estado à espreita do isolamento, da privação, da tortura e de outras inumanidades cujo poder empurra com força avassaladora o corpo e a alma – não sem antes exauri-los de toda esperança – para um lugar de “não-lugar” da vida, onde a condição de sujeito é amputada.
Pois bem, no Brasil em 1964 houve a suspenção oficial dos direitos fundamentais do homem e o resultado foi a violência estatal expressa de forma direta e transparente – eis que um novo Estado de Exceção dava as caras: abria-se escancaradamente o  terreno para “a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de cidadãos que, por qualquer razão, não pareciam integráveis ao sistema político”. (AGAMBEN, 2004)
Durante esses últimos dias, em virtude dos 50 anos do Golpe Militar em 1964, tivemos um vislumbre do que foi a ditadura militar nesse país – muitos a revisitaram na memória de seu próprio testemunho. Vimos na televisão, em revistas e jornais inúmeras matérias e manifestações sobre os 21 anos de ditadura. Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a confissão do Coronel Paulo Magalhães diante da Comissão Nacional da Verdade (nome da comissão brasileira que tem por objetivo investigar as violações de direitos humanos por agentes do Estado, ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil): com uma frieza sádica, ele alegou ter matado e torturado vários militantes contra a ditadura (para ele “terroristas”), e que não se arrepende disso.
Bom, caríssima juventude politizada, naturalmente a pergunta mais óbvia que se poderia fazer é “e qual será sua punição?”. Temos que nos lembrar de que os atos como os do Coronel foram orientados pela burocracia militar vigente; portanto, uma ação que deve ser julgada não por próprio mérito, mas por mérito das prescrições estatais estanques. Isso quer dizer que não haverá punição, pois os autores de crimes contra os direitos humanos não poderão mais ser processados ou punidos em razão da lei de Anistia de 1985, que perdoou os crimes políticos cometidos durante o regime militar. Vide o site do Ministério Público Federal.
É em condições como essa que vemos a lógica estatal erguer-se a prumo torto: como pode indivíduos partícipes em sequestros e assassinatos de ativistas terem sua impunidade legitimada pela lei, se muitos deles insistem ainda hoje em ocultar o paradeiro de vários sequestrados e/ou de restos mortais dos que tiveram suas vidas decepadas pelo regime militar? Ora, ocultação de cadáver não é crime vigente?
Pior ainda: como pode o Estado de Direito democrático atual aceitar a desoneração de obrigação para com a justiça humana, da autoria de crimes políticos no Estado de Exceção, sem que seu próprio fundamento, que se dá sobre os direitos fundamentais do homem, não caia em contradição?