A ação articulada entre a Prefeitura e o governo de São Paulo para acabar com a Cracolândia conseguiu a façanha de ser unanimemente rejeitada. Sociedade civil organizada, movimentos sociais, Ministério Público e Igreja Católica já se posicionaram contra o fato de a operação no centro de São Paulo tratar uma questão tão delicada e dolorosa como o consumo do crack como um mero caso de polícia.
A droga é um problema que deve ser tratado com repressão policial apenas quando se trata de enfrentar e coibir o tráfico – e, mesmo assim, com estratégias inteligentes que impeçam os traficantes de dominar áreas da cidade e ameaçar as pessoas. Neste caso, a repressão policial pela polícia é admissível – jamais para enfrentar usuários miseráveis e desarmados. O padre Júlio Lancelotti esclarece muito bem essa questão quando afirma que tratar o usuário das drogas como criminoso é a mesma coisa que tentar resolver o problema alcoolismo prendendo dependentes do álcool. A dependência química é uma doença e precisa ser tratada como tal.
Qual a linha terapêutica que sustenta a crença das administrações públicas de São Paulo de que a dor, o sofrimento e até a humilhação levarão os usuários a buscar tratamento? Existem pesquisas que corroboraram essa tese estapafúrdia? Ao contrário disso, o que se sabe é que as crises de abstinência sem acompanhamento adequado podem gerar ataques de violência e expor ainda mais a população a um problema que precisa ser enfrentado por meio de intervenção intersetorial.
A extinção da Cracolândia só é possível se os usuários de droga puderem ser recuperados. Fora isso, o problema só estará sendo deslocado. Isso é viável por meio de uma intervenção intersetorial que combine a recuperação oferecida pela rede de saúde pública com oportunidades nas áreas de educação e cultura. A inclusão social poderá também ser feita por meio do trabalho e, para isso, deveria ser criada uma política municipal de apoio e fomento a projetos de geração de renda. Seria uma contrapartida ao programa do governo federal prometido para abril, que se propõe a enfrentar o crack por meio de uma abordagem de saúde pública.
Também seria importante construir consultórios de rua, cujos recursos já foram liberados pelo Ministério da Saúde. Criados em Salvador nos anos 1990, esses escritórios são uma fórmula de sucesso porque os profissionais envolvidos se aproximam da população usuária de drogas nas ruas, convivem com ela até ganhar a sua confiança. E isso faz toda a diferença. O viciado compreende que aquele profissional está lá para orientá-lo a viver melhor. Aí, sim, é possível realizar um trabalho psicossocial e educativo de resgate do indivíduo.
Ao lado da intervenção psicossocial, também é necessário a criação de políticas de redução de danos sociais e à saúde associados ao consumo de drogas. Cerca de 30% da população da região é constituída de crianças e adolescentes que, desde cedo, tiveram a enorme infelicidade de crescer sob um flagelo insuportável. E uma ação meramente repressiva não consegue lidar com essas crianças.
Há muito tempo, por descaso e omissão do poder público municipal, as ruas do centro histórico de São Paulo tornaram-se um lar sórdido e degradante para cerca de três mil pessoas dependentes da droga. O abandono da região permitiu que um lugar onde ninguém queria ir fosse ocupado por pessoas que a sociedade não desejava enxergar. Mas, como agora há interesse em se recuperar a região para expansão imobiliária – com os projetos Nova Luz e Operação Urbana Lapa-Bras, na Comunidade do Moinho –, as autoridades municipais e estaduais querem simplesmente expulsar os dependentes, como se fossem dejeto humano.
Mais uma vez a administração pública paulista coloca os interesses financeiros à frente da pessoa humana. Como diz Ariel de Castro Alves, presidente da Fundação Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que se assistiu nos últimos dias na Cracolândia foi apenas dispersão dos problemas, o famoso “colocar a sujeira para debaixo do tapete”.
*Professor, autor do material de Física do Sistema de Ensino do Cursinho da Poli (SP) e diretor da instituição