Início Geral Há 35 anos na luta diária contra o preconceito

Há 35 anos na luta diária contra o preconceito

No dia do seu aniversário, Renatinho sofreu um dos mais graves ataques racistas de sua vida: em seu local de trabalho foi chamado de “macaco”, “negão” e “animal”

Foto: Luísa Ziemann
Renatinho busca entender o motivo de tanto ódio gratuito

Luísa Ziemann
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Os gritos eufóricos de “macaco”, “negão”, “animal”, entre outros termos difamatórios proferidos por uma mulher de 58 anos ecoaram pela Marechal Floriano na tarde da última sexta-feira. E ainda vão ecoar no coração e na memória de Renato Santos por um bom tempo. Em um dos pontos mais movimentados da cidade, bem no centro, no local de trabalho do santa-cruzense, um lamentável episódio de racismo chamou atenção de todos que circulavam pelo local e acabou se tornando caso de polícia.


Este foi um aniversário bem diferente do planejado por Renato – o Renatinho, como é conhecido por amigos e também em suas redes sociais, onde atua como digital influencer. O garçom do Santomé Bar e Restaurante estava comemorando 35 anos na sexta-feira, quando o episódio marcante aconteceu. Segundo o santa-cruzense, tudo começou ainda pela manhã, quando uma mulher – que não teve sua identidade revelada – chegou ao restaurante pedindo por uma cerveja. Desde o começo o tratamento da mesma com ele chamou atenção, mas Renatinho não imaginava o que estava por vir.


Segundo o garçom, o atendimento realizado com ela foi o mesmo que ele busca ter com todos os clientes: com atenção e respeito. Mas a mulher insistia em o tratar mal e o insultar. “Ela me chamou de “negão” por diversas vezes, mandava eu limpar a sua mesa, o chão. De uma maneira nenhum pouco amigável”, conta Renatinho. Com o passar das horas, o clima piorou. O funcionário conta que foi importunado pela cliente até mesmo durante o seu intervalo, enquanto estava almoçando. “Estava sentado, comendo, olhando para baixo, quando senti alguém puxar minha camiseta. Era ela, e falava “não vai me atender? Não vai limpar o chão lá onde eu estou? Ela chegou a falar que eu vim de uma família de macacos.”


Depois disso, a situação se complicou ainda mais. Os insultos por parte da mulher eram tantos que chamaram atenção dos demais clientes e funcionários do estabelecimento, e até mesmo de lojistas do entorno do Santomé. Por volta das 15h30, dois policiais do 23° Batalhão de Polícia Militar (23°BPM), encaminharam a acusada para a Delegacia de Polícia Civil e lavraram o auto de prisão em flagrante pelo crime de injúria discriminatória. Os policiais foram solicitados pelo proprietário do restaurante, após a mulher insistir em se dirigir à Renatinho com termos de ordem racista.


Após o acontecimento, o caso tomou grandes proporções no Instagram, onde se criou uma rede de apoio ao santa-cruzense e contra o racismo. Dois vídeos do episódio passaram a circular e serem compartilhados por centenas de amigos, conhecidos e demais pessoas que se mostraram indignadas com a atitude da mulher. O incidente causou tamanha revolta que as filmagens foram parar até mesmo em perfis de notícias de alcance nacional, com milhões de seguidores.


Ainda muito abalado com o episódio, Renatinho busca entender o motivo de tanto ódio gratuíto. “Na hora eu só pensava que aquilo não podia estar acontecendo. Justo no dia do meu aniversário”, lamenta o garçom. “As pessoas oferecem o que tem dentro de si. Eu não fiz nada de errado para ela para merecer esse tipo de tratamento, mas acabou acontecendo. Eu estava só tentando fazer o meu trabalho da melhor forma.” O desejo agora é de justiça. “Nós (negros) passamos por situações de racismo ao longo de toda a vida. Essa não foi a primeira vez e nem será a última. Muitas vezes pensamos em não levar adiante, não registrar ocorrência, não abrir um processo, porque temos em mente que não vai dar em nada. Mas não podemos deixar passar batido. Em pleno século 21 é inadmissível que a cor da minha pele seja motivo de preconceito.”

RECLUSÃO DE ATÉ TRÊS ANOS

Agora a Polícia Civil trabalha na coleta de provas e dará início aos depoimentos de testemunhas para embasar o inquérito sobre o caso de injúria racial. Os vídeos – um que é um recorte das câmeras de segurança do Santomé e outro gravado pela própria vítima à caminho da delegacia – também servirão como provas. De acordo com a titular da 1ª Delegacia de Polícia Civil, delegada Ana Luísa Aita Pippi, outros crimes que a acusada possa ter praticado também serão analisados. Em uma das filmagens, por exemplo, a mulher profere ameaças de morte à vítima: “tu vai ver se eu não te mato”, ela diz.


A acusada optou por permanecer em silêncio durante o registro do flagrante. Ontem, entretanto, a mulher acabou recebendo, por parte do judiciário, o direito de liberdade provisória mediante termo de compromisso de comparecimento a todos os atos do processo. Ela também deverá comparecer mensalmente em juízo para justificar suas atividades. O inquérito policial deve ser remetido ao Poder Judiciário em 30 dias. A pena pela injúria racial varia de um a três anos de reclusão, além de pagamento de multa.

“Tu acha que ser preto é bom?”

Um dos vídeos que será utilizado como prova para embasar o inquérito e que viralizou nas redes sociais foi registrado pelas câmeras de monitoramento do restaurante, que mostram as diversas vezes em que a mulher se dirigiu à Renatinho com insultos raciais e, em determinado momento, tentou até mesmo encostar no garçom, que tentava realizar o seu trabalho.


Outra filmagem gerou ainda mais revolta. Trata-se de um vídeo gravado pela própria vítima quando ele e a acusada estavam à caminho da delegacia. Ambos foram encaminhados no mesmo veículo da Brigada Militar e, durante o trajeto, em frente aos policiais, a mulher continuou a proferir palavras de ódio. “Isso não vai mudar a tua cor nem a minha”, “Tu vai ver se eu não te mato, desgraçado”, “Tu acha que ser preto é bom?”, “Tu vai mudar de cor? Tu vai fazer uma plástica?”. Essas eram algumas das frases que Renatinho foi obrigado a ouvir, calado, sem reação.

Uma trajetória marcada por desafios

Renatinho é de origem humilde. Nascido no Bairro Bom Jesus, o santa-cruzense perdeu a mãe aos 14 anos. Depois disso, foi criado pelos tios. Vindo de uma família pobre, o digital influencer está acostumado a batalhar pelos seus sonhos desde cedo. Com 15 anos já trabalhava, aos 18 teve a carteira assinada pela primeira vez. Servente de pedreiro, frentista, descarregador, montador, garçom. Já fez de tudo um pouco. Atualmente, tem dois empregos: no Santomé Bar e Restaurante, durante o dia, e no Velasco Bar, à noite.


Paralelo à isso, Renatinho atua como digital influencer em suas redes sociais. Sempre com um sorriso no rosto, o jeito descontraído do garçom e a maneira leve de lidar com os acontecimentos da vida atraem milhares de seguidores para os seus stories – onde ele compartilha sua rotina, faz piadas, dancinhas e ainda divulga patrocinadores. Mas quem vê a alegria de Renatinho nas redes sociais nem imagina as lutas diárias que ele trava desde criança.


“Já tive a oportunidade de ir para o lado errado, claro que tive. Mas ao longo de toda a minha trajetória Deus sempre foi muito bom comigo. Sempre me enviou pessoas que, quando eu estava prestes a desistir, me ajudaram a me reerguer”, conta o garçom. “Sempre tive pessoas que me ajudaram a manter minha cabeça no lugar, me ensinaram a ver o lado bom das coisas, a acreditar que eu deveria seguir para ajudar a minha família.”


Diante de mais um percalço da vida, outra vez Renatinho busca ver ao menos um lado bom em toda essa situação. “Ninguém está preparado para passar pelo que eu passei. Todos que me conhecem sabem da pessoa que eu sou, não tem como não se comover com um episódio desses. Ver a mobilização de todos, todas as mensagens que recebi… Só posso agradecer”, destaca. “Isso tudo foi um tapa na cara da sociedade. Costumam dizer que é vitimização, que é “mimimi”, que racismo não existe. Eu não estou aqui para me vitimizar e nem quero isso, mas infelizmente o racismo existe sim e precisa ser visto.”