Início Geral Boate Kiss: Daniela Arbex conta em livro sobre a história que vitimou...

Boate Kiss: Daniela Arbex conta em livro sobre a história que vitimou 242 jovens

Divulgação/Editora Intrínseca
A escritora Daniela Arbex, na obra Todo dia a mesma noite
narra a história não contada da Boate Kiss

Talvez esta seja, e com certeza será, a entrevista que fiz mais marcante de meu trabalho no Riovale Jornal. Não é nada fácil escrever sobre algo que nos traz saudade, tristeza e como não dizer, revolta. Já se passaram nove anos da tragédia que colocou o Rio Grande do Sul abaixo de lágrimas espalhadas por todo o Brasil, e além deste. Foi no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, Boate Kiss, onde 242 jovens perderam a vida em um incêndio. Eu li todas as linhas do livro Todo dia a mesma noite – A história não contada da Boate Kiss, da renomada escritora Daniela Arbex. Confesso, tive que parar em alguns momentos porque as lágrimas escorreram e não conseguia prosseguir, levei o triplo do tempo de leitura. Muitas vezes senti dor, imaginava as vítimas e seu sofrimento. O livro foi lançado em 19 de janeiro de 2018, pela Editora Intrínseca. A capa traz a cor cinza, como se fosse uma nuvem de fumaça. A mesma imagem que turvou a visão dos jovens desesperados para fugir do cenário de horror em que se encontravam.


Iniciei a leitura e a cada página entristecia por saber que Santa Cruz do Sul, assim como inúmeras cidades de nosso Estado, foi atingida. Perdemos nosso atleta, filho do professor Nestor Raschen, do Colégio Mauá, o querido e, digamos, sim, verdadeiro herói, Matheus Raschen. Seu nome estampa a contracapa do exemplar com 248 páginas, relatos e fotos. Daniela colocou emoção em cada palavra. Me senti como se estivesse lá, fechava os olhos e me via dentro do cenário, e pelas palavras da escritora, sentia no coração a tristeza que os pais sentiram e ainda sentem ao perderem os filhos, uns na hora, outros em alguns dias e outros meses depois. Então, resolvi entrar em contato com a escritora para entrevista exclusiva ao Riovale Jornal. Ela falou sobre o contexto desta obra que será cenário de uma série da Netflix.

Foto: Carmelita Lavorato
Daniela Arbex: “Durante todo o tempo de apuração eu
conseguia me colocar no lugar daquelas pessoas”


A escritora Daniela Arbex, na obra Todo dia a mesma noite narra a história não contada da Boate Kiss pelo olhar dos sobreviventes, dos familiares das vítimas, dos profissionais da saúde, dos socorristas e dos Bombeiros. “É um relato muito aprofundado do que aconteceu em 27 de janeiro de 2013, e para escrever o livro eu fui a Santa Maria mais de 15 vezes, fiquei dois anos no Rio Grande do Sul, ouvi mais de 150 pessoas. Foi um dos livros mais impactantes para mim porque durante todo o tempo de apuração eu conseguia me colocar no lugar daquelas pessoas, porque qualquer um de nós poderia estar dentro daquela boate. Realmente, ouvir tudo e todas as histórias e perceber o quanto essas famílias foram atravessadas pela tragédia foi muito doloroso, mas, ao mesmo tempo, eu tinha o entendimento de que esta história precisava ser construída, a memória coletiva do País. Este livro seria importante para que o Brasil pudesse conhecer uma de suas piores tragédias e criar uma consciência coletiva em relação à prevenção”, detalhou.


Durante toda a produção da obra, Daniela contou com apoio dos familiares das vítimas. “A recepção foi muito positiva. Consegui construir, nesses dois anos, uma relação de confiança que vai além da obra e que permanece até hoje. Me aproximei muito dessas pessoas e elas se tornaram muito importantes para mim. Antes de publicar o livro, eu li com os personagens o capítulo referente a cada um deles. Sempre faço isso, pois com o volume tão grande de informações podemos errar. Foi bonito ver a reação de cada um, bem como os bastidores dessa leitura que foram muito comoventes. A parte que mais me comoveu foi quando enviei o livro para as famílias antes de chegar nas livrarias. Uma das mães me respondeu assim: – ‘Receber teu livro foi como receber minha filha de volta!’. Isso tudo fez com que valesse a pena”, contou.

Foto: Marizilda Cruppe
Nas paredes da Boate Kiss, o número das vítimas 242 e um pedido de justiça. A imagem, captada pela fotógrafa Marizilda Cruppe, é a primeira que ilustra a página 237 do livro


Daniela lembra de uma fotógrafa que a acompanhou em uma das vezes em que esteve em Santa Maria, a Marizilda Cruppe. “Ela é do Rio de Janeiro e participou do projeto em uma fase em que eu já tinha uma relação construída com essas pessoas e elas estavam mais à vontade para se deixar fotografar. Foram imagens muito humanas e com o talento da fotógrafa que conseguiu captar os momentos de cada personagem”.


Um pouco mais de mês antes de completar nove anos da tragédia, no dia 10 de dezembro, os quatro réus do caso Kiss foram condenados. “O julgamento foi um momento muito importante na história deles. Falo sempre que a falta de justiça dói tanto quanto a morte. Os familiares esperaram por quase nove anos. Muitos adoeceram nesse processo de espera. O julgamento foi o momento que eles precisavam viver, foi um rito de passagem. Foi muito doloroso e no qual eles se depararam com os últimos minutos de vida de seus filhos e isso é insuportável para qualquer ser humano. Tiveram que enfrentar isso também, mas, em nome da memória de seus filhos, que não estavam mais presentes para se defender, os familiares estavam lá. Eles foram gigantescos nesse processo. Se não fossem os pais, os réus não teriam ido sequer a júri popular. A luta dos pais foi impressionante para que essa condenação acontecesse. Esse momento, especialmente para mim, foi muito tocante não só porque meu livro foi citado durante o julgamento em vários momentos, mas foi anexado ao processo como documento pelo Ministério Público e, ao final da leitura da sentença, o juiz Orlando Faccini Neto citou a obra por três vezes”, explicou Daniela.


Sobre o projeto da Netflix, que futuramente irá transformar a obra em uma série, Daniela fez alguns comentários. “A série terá o mesmo nome do livro. É um trabalho que vem sendo desenvolvido há mais de dois anos. Sou consultora da série e a produção já iniciou, com gravações previstas para março. Talvez seja a maior série que a Netflix já tenha feito no Brasil. Um trabalho impecável e impressionante, que está sendo feito para que a história da Kiss seja contada para o mundo”, finalizou.

A OBRA

Com prefácio de Marcelo Canellas, premiado repórter do “Fantástico”, quarta capa assinada por Marcelo Beraba, diretor do “Estadão” em Brasília e conselheiro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), e imagens feitas pela fotojornalista Marizilda Cruppe, a obra de Daniela Arbex é uma impactante tomada de consciência, um despertar de empatia pelos jovens que tiveram seus futuros barbaramente interrompidos.

A ESCRITORA

Daniela Arbex nasceu em Minas Gerais, é autora premiada de outros quatro livros, todos publicados pela Intrínseca. Sua obra de estreia, Holocausto brasileiro (2013), foi reconhecida como Melhor Livro-Reportagem de 2013 pela Associação Paulista de Críticos de Arte e segundo Melhor Livro-Reportagem do Prêmio Jabuti de 2014. Além disso, foi adaptada para documentário pela HBO e inspirou a série de ficção Colônia, exibida pela Globoplay. Cova 312 (2015), segundo livro, foi vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Livro-Reportagem em 2016 e Todo dia a mesma noite (2018), que narra a história não contada da tragédia de 2013 na Boate Kiss, ganhará adaptação pela Netflix. Os dois mundos de Isabel (2020), primeira biografia escrita por Daniela Arbex, foi lançada no mesmo ano que a autora recebeu o prêmio de Melhor Repórter Investigativa do Brasil pelo Troféu Mulher Imprensa. Daniela Arbex tem ainda outros 20 prêmios nacionais e internacionais no currículo, entre eles três prêmios Esso e o americano Knight Internacional Journalism Award. Foi repórter especial do jornal Tribuna de Minas por 23 anos e atualmente dedica-se à literatura.

Trecho do livro:
“Se a recordação de uma
tragédia é dolorosa, imagine carregá-la dentro de si”