Há uns dez anos, iludido com os indícios de estabilidade democrática, acreditando que o passado não tornaria a assombrar, cheguei a me perguntar se a ditadura pós-64, ademais dos efeitos nocivos ao País e, sobremaneira, à sociedade civil, não teria também trazido prejuízos aos próprios militares, limitando o exercício da sua cidadania, na medida em que arredados do palco do debate político. Refletia se havia alguma injustiça no fato de os erros e crimes anistiados de alguns terminarem por etiquetar o conjunto, por preconceito. Cogitava da participação, não implicando atuação partidarizada da instituição.
Discorrendo sobre o equívoco de pensar que os militares devem se manter longe da política, apontando que a política está presente tanto nos meios militares quanto nos demais setores da sociedade, o professor doutor Paulo Ribeiro Cunha, consagrado pesquisador sobre as relações das Forças Armadas com a sociedade civil, defende que elas devem pedir desculpas à nação pelo período ditatorial e que é necessário separar a instituição dos seus torturadores.
O desembarque de um capitão do Exército à presidência da República, militarista e armamentista até a medula, próximo demais de milicianos, com mania de perseguição e exageradamente preocupado com assuntos de segurança e espionagem; representou também o retorno de militares – da reserva e da ativa. São mais de 6 mil em funções civis no governo federal e, segundo relatório do TCU, quase 8.500 em comandos, ministérios e tribunais militares. Apenas na chefia de estatais somam 92. Na esplanada dos ministérios ocupam mais de uma dezena de funções estratégicas cimeiras. Até recentemente, a pasta da saúde, demandando como jamais antes pelo saber técnico especializado, em função da Covid-19, era liderada por um general, escoltado por coronéis e tenentes, realidade desnudada na CPI “do Genocídio”.
Alguns efeitos desse novo modelo de gestão não tardaram a ser sentidos. A bem da verdade, se anunciaram antes mesmo, quando era aplainado o terreno eleitoral. Oportuno lembrar da revelação feita pelo general Eduardo Villas Bôas, relatando articulação com a cúpula do Exército em 2018, para postagens no Twitter, “alertando” o Supremo às vésperas do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula, também pré-candidato. As intoleráveis e inaceitáveis pressões indevidas sobre o Poder Judiciário não somente se repetiram como hoje também atingem o Poder Legislativo. Destaque para a recente nota do ministro da Defesa Braga Netto, repudiada pelo senador Omar Aziz, como intimidação às investigações sobre as responsabilidades do governo federal na pandemia. O mesmo general, no último dia 22/07, segundo publicou “O Estadão”, ladeado pelos chefes das FFAA, teria “comunicado” ao presidente de Câmara dos Deputados que não haverá eleição em 2022 caso não haja voto impresso. Tal declaração foi rebatida pelo ministro Gilmar Mendes, rememorando que “na democracia não há espaço para coações autoritárias armadas.”
O respeito ao Estado Democrático de Direito demanda obediência de todos às leis e à Constituição. Em tempos de paz, a missão cívica das FFAA deve estar restrita aos limites da caserna, sem que isso signifique encapsular-se num hermetismo não transparente ao olhar do povo.
O artigo 142 da Constituição não lhes outorga papel de agente moderador, não autoriza que afronte os poderes constituídos, não confere imunidade para desvios de conduta e, fundamentalmente, não abre poros que façam transitar atos de regulação ou de conspiração contra a democracia. Que percebam os militares legalistas e comprometidos com a democracia, o perigo que representa a politização institucional, a insubordinação, a quebra da disciplina (como no episódio em que o general Pazzuello emprestou político ao presidente) e o risco de uma importantíssima instituição de Estado ser confundida com aparelho de governo. As forças militares precisam urgentemente internalizar que não têm o direito de tutelar a nação, ao reverso, devem obediência ao poder civil. É assim que funciona no mundo civilizado.
Que não aceitem a desconsideração de quem os tem como “meu exército”. Que cessem, de uma vez por todas, as ameaças, abertas ou veladas, às liberdades. Que se acostumem e se amoldem à democracia!