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Santa-cruzense destaca a educação sexual

Douglas Henkes lembra fato que sofreu aos sete anos com objetivo de estimular vítimas a denunciarem criminosos e famílias e escolas abordarem o assunto com as crianças

Tiago Mairo Garcia
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Foto: Pixabay

Violência sexual. Um problema cada vez mais recorrente, onde criminosos cometem atos ou tentativas com uso da violência ou coerção, comentários ou investidas indesejadas e atividades como o tráfico humano ou diretamente contra a sexualidade de uma pessoa, independente da relação com a vítima. Na última semana, ganhou destaque o julgamento de um caso de estupro ocorrido em Santa Catarina envolvendo a jovem Mariana Ferrer, 21 anos, após vídeos da audiência virtual serem publicadas pelo site The Intercept Brasil. Nas imagens, o advogado Claudio Gastão da Rosa Filho, que atua na defesa do empresário André de Camargo Aranha, acusado pelo crime, mostra fotos citando que a jovem estaria em “posições ginecológicas” e afirma que “jamais teria uma filha do nível dela”. A fala do advogado só foi encerrada após Mariana, aos prantos, implorar por respeito durante a sessão.


A situação foi acompanhada pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira, que não se manifestaram para interromper o advogado durante a sua fala contra a jovem. Durante o processo, o Ministério Público mudou a sua posição e passou a argumentar pela falta de provas e inocência do suspeito. Na audiência, o promotor chegou a sugerir que o acusado teria cometido um estupro “sem dolo”, quando não há intenção. Essa conclusão da acusação acabou recebendo o apelido de “estupro culposo”, termo que não existe na tipificação jurídica do crime. Por falta de provas, Aranha foi absolvido da acusação de estupro de vulnerável.


A publicação do vídeo e a decisão da justiça pela absolvição do suspeito gerou revolta e indignação com diversas manifestações de repúdio ao fato nas redes sociais. A situação vivenciada pela jovem catarinense levou o santa-cruzense Douglas Henkes, 33 anos, a publicar posts nas redes sociais Twitter e Facebook contra o fato e a relatar uma situação de violência sexual que viveu com sete anos de idade quando foi vítima de abuso sexual. Em entrevista exclusiva concedida ao Riovale Jornal, Henkes denuncia o fato que vivenciou na infância, destaca a importância das famílias abordarem a educação sexual com crianças e adolescentes e comenta a repercussão do caso envolvendo a jovem catarinense.

Douglas Henkes: “meu objetivo foi tentar naturalizar a conversa, propor diálogo e incentivar as denúncias”


Riovale Jornal – Você publicou uma série de prints em sua página na rede social onde cita o seu protesto sobre o caso Mariana Ferrer e em seguida denuncia ter sido vítima de abuso na infância. Esse fato ocorrido com a jovem catarinense foi o que motivou você a denunciar a situação vivenciada na infância?


Douglas Henkes – O caso da Mariana Ferrer me entristeceu e gerou revolta, porém, o que motivou minha manifestação pública foi perceber que em meio à frustração popular, determinados compartilhamentos em redes sociais continham informações que demonstravam certo desalento na busca por justiça. O que é compreensível, uma vez que o Brasil está entre os países com mais casos de estupro, mas precisamos reagir e dar força aos movimentos que buscam mitigar o problema, o tema precisa virar prioridade governamental. Atualmente possuímos diversos canais de denúncia, recursos que gerações passadas não tinham e precisamos incentivar o uso. Se hoje os números são alarmantes, é triste imaginar a realidade vivida em tempos passados. É necessário reconhecer a gravidade do problema e reconhecer a vulnerabilidade da maioria absoluta entre as vítimas, que são mulheres e crianças. Estou em permanente atualização e acompanhando reflexões sobre diversos temas, principalmente discussões acerca das desigualdades no Brasil e para que diferenças associadas a gênero e raça sejam evitadas, precisamos acelerar nossas mudanças culturais. Isso é urgente! Ser de um grupo social, pertencer a uma etnia, ter uma vivência seja ela de gênero, de raça, de classe, desenvolve na pessoa uma sensibilidade e essa sensibilidade é capaz de capturar certas estruturas de sentimento ao passo que outras não. Procurei contribuir com essa pauta majoritariamente feminina, como uma espécie de intenção ou ato reparatório, algo que a minha geração deve a esta e a outras gerações.

RJ – Você citou na publicação que foi molestado aos sete anos em uma escolinha de futebol de Santa Cruz, por um treinador que praticou sexo oral com você. Você acredita que mais crianças tenham sofrido abuso pela mesma pessoa?


Douglas – Fica difícil imaginar que possa ter sido apenas um ato pontual, infelizmente minha inocência quando criança não trouxe nenhuma dificuldade ou punição ao violador. Acredito que tenha ocorrido outras vezes sim.

RJ – Você relata que por algum motivo não contou aos seus pais e que na época decidiu não jogar mais pela escolinha. Somente na vida adulta você relatou o fato para pessoas próximas e conseguiu contar para seus pais. Como eles receberam este seu relato após tantos anos?


Douglas – Obviamente ficaram tristes com o relato e lamentaram por não terem percebido nenhuma mudança de comportamento. Imaginando que eles pudessem ficar com algum sentimento de culpa, imediatamente me antecipei a esse impacto psicológico e deixei claro que só houve um culpado naquela historia, o infrator. Foi bem triste, sei do esforço e dos sacrifícios que fizeram para cuidar e me educar da melhor forma possível, infelizmente educação sexual não era um tema presente em nossa sociedade, havia pouca pesquisa a respeito e era um tabu.

RJ – Você frisa que se arrepende de não ter contado antes. Você sofreu algum trauma ocasionado pelo fato?

Douglas – Mencionei em meu relato, que odeio circo e palhaços, em função do abusador ter me levado ao circo um dia antes, o que de certa forma é insignificante perto do trauma que inúmeras pessoas acabam tendo. Somos o resultado de tudo que já vivenciamos, mas até hoje não consegui relacionar mais nada àquele momento.

RJ – Você cita que não busca justiça para o seu caso por não ter provas e entender que não saberia reconhecer a pessoa. Você acredita que esta pessoa ainda possa estar exercendo a atividade ou ela já tinha idade avançada na época?


Douglas – O treinador deveria ter entre 30 e 35 anos na época. Não sei se ainda está na cidade, tampouco entre nós. Recebi dezenas de mensagens depois da publicação, logo nas primeiras já obtive informações e até um possível nome, mas não é uma descoberta que vá me acrescentar algo, meu objetivo foi tentar naturalizar a conversa, propor diálogo e incentivar as denúncias.

RJ – Você defende que é importante as pessoas falarem sobre educação sexual com as crianças. Na sua opinião este é o melhor caminho para que se diminua os casos de abuso?

Douglas – Sim! Inclusive pertenço à parcela da população que acredita na comunidade científica. A Organização Mundial de Saúde (OMS) analisou mais de mil relatórios sobre os efeitos da educação sexual no comportamento dos jovens e constatou que quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam a vida sexual. Precisamos bater de frente com essa onda ultraconservadora que assola o país. Movimentos que criticam o uso da palavra “gênero” e do termo “orientação sexual” nos planos nacionais de ensino, também acabam influenciando os pais a acreditarem que professores irão ensinar os alunos a fazer sexo, ou “mudar” a orientação sexual. É uma falácia e retrocesso gigantesco. Paralelo a isso, os professores acabam ficando com receio da possível reação dos pais, ao abordarem temas tão importantes. Outro agravante, é que o nível de formação inicial dos professores no Brasil, não prepara os profissionais para lidarem com esse tema, precisaríamos capacitá-los e posteriormente criar políticas públicas de formação continuada, para que pudessem acompanhar o ritmo das discussões e debates que vão surgindo. Educação sexual é todo espaço em que qualquer indivíduo tem a oportunidade de aprender a respeito do corpo e da sua sexualidade, independente de ser em sala de aula ou em casa, o importante é que se tenha abertura para o diálogo. A criança tem direito de conhecer seu próprio corpo, de entender a diferença entre meninos e meninas, entender de onde vêm os bebês e não podem mais serem enganadas com histórias fantasiosas da cegonha, pois no momento que descobrirem a verdade por outros meios, vão perceber que não possuem uma relação de confiança com pais e educadores. Aos quatro anos de idade, por exemplo, já devem saber sobre suas partes íntimas e precisam saber reconhecer qualquer aproximação inapropriada de um adulto.

RJ – Sobre o caso Mariana Ferrer, qual a sua opinião sobre o resultado do julgamento que absolveu o suspeito?


Douglas – Considero prudente aguardarmos o processo vir a público para que pessoas do meio jurídico possam fazer essa análise, mas aparentemente temos evidências que remetem a mais um caso de machismo estrutural, em uma sociedade que ainda é, em grande parte, patriarcal. Crença essa, enraizada na cultura da sociedade e apesar dos esforços de movimentos feministas, ambos os sexos perpetuam essa ideia de subjugar, oprimir e excluir socialmente. Os homens são os maiores culpados, mas as mulheres não estão imunes de reproduzir e perpetuar o machismo estrutural. Torço para que movimentos feministas ganhem cada vez mais apoio, tanto de homens, quanto de mulheres e que parem de ser rotulados como “mimimi”.

RJ – Você acredita que a repercussão negativa da sociedade perante a justiça no caso envolvendo a jovem catarinense pode resultar em uma mudança de postura das autoridades em futuros julgamentos de suspeitos de cometer abuso e estupro?


Douglas – A exemplo do Black Lives Matter, acredito que a partir de agora, tudo vai depender da força dos movimentos populares e da oposição. Nosso presidente da República ainda não se manifestou, nem sequer emitiu alguma mensagem se solidarizando com o caso da Mariana Ferrer, sua postura ao longo do mandato vem contaminando muitos brasileiros, pois um líder nacional influencia diretamente comportamentos e acredito que os acontecimentos deste julgamento, possam sim, ser atribuídos a essa representatividade da “branquitude” e de uma masculinidade tóxica do presidenciável.