Não sou historiador. Aprendi sobre a chamada Revolução Farroupilha aquilo que era ensinado a todo estudante nos anos 70 e 80 do século passado, cujo conteúdo se resumia a meia dúzia de páginas que a doutrina da época permitia ver: uma história decantada nos livros, falando de heróis, de idealismo, glórias, honrarias, boas intenções, justos motivos e, ao final, troca de cumprimentos, promessas de lealdade e a paz do Ponche Verde.
Nas décadas que seguiram, de forma desordenada, li um pouco da produção de Tau Golin, Mario Maestri, Sandra Pesavento e Juremir Machado da Silva. Estes autores me ofereceram um outro olhar, mais que respostas, geraram interrogações e inquietudes.
Dos vários aspectos que poderia abordar, me restrinjo à perspectiva do negro na ‘gesta dos farrapos’.
Uma outra face do que hoje comemoramos diz respeito ao que foi uma derrota para os verdadeiros farrapos, os escravos traídos, desarmados, emboscados, massacrados em Porongos e depois entregues ao Império, que os vendeu à burguesia para realizarem o transporte de fezes humanas e novamente os usou como ‘bucha de canhão’ na Guerra do Paraguai, uma vez mais prometendo liberdade.
O movimento farroupilha, em realidade, não partiu da senzala, os negros não possuíam as razões dos chefes, foram integrados às suas tropas para mão-de-obra de combate. Se submetiam à guerra apenas pela promessa de posterior alforria.
O ideário insurgente tinha lugar na Casa-Grande, articulado pela elite branca de então, formada por grandes criadores, latifundiários, quase todos escravocratas, reivindicando menor carga tributária para o couro e o charque.
Não se tratou, pois, de uma rebelião popular, uma revolução de todos, por justiça social; tendo nisso se distinguido da contemporânea, mas abolicionista, ‘Balaiada’ no Maranhão.
A versão alternativa à oficial, também com apoio documental, dá conta que negros foram recrutados (inclusive crianças), usados e vendidos para estancieiros uruguaios.
Enganados pela promessa de liberdade, que a Constituição da República Farroupilha sequer previa essa possibilidade, que muitos chefes revoltosos poupavam os seus e arregimentavam os segregados dos adversários, que um peão branco, se chamado a lutar, poderia enviar em seu lugar um dos negros que possuía, que o oficialato superior era formado apenas por brancos, que os negros não possuíam as mesmas armas e sequer podiam combater à cavalo, que a escravidão seguiu nas fazendas do pampa, após o crepúsculo da guerra civil. Bento Gonçalves, por exemplo, sabe-se, morreu deixando como herança mais de 50 cativos.
Assim, a par de confraternizar e reverenciar a identidade gaúcha, entendo oportuno aproveitar o dia também para refletir, quase dois séculos passados, sobre versos a façanhas modelares, refrões de liberdade e igualdade e reverberadas relações entre escravidão e ausência de virtude.
André Pinto – juiz de Direito e membro da AJD