Ulrich Beck, um dos mais influentes sociólogos contemporâneos e igualmente um nome importante para o Direito, é autor de uma obra clássica chamada “Sociedade de Risco, Rumo a outra Modernidade”, cuja primeira edição fora publicada em 1986, logo após o acidente de Chernobyl. Referido acidente, como é sabido, deu-se em razão de problemas no teste de segurança na usina nuclear da citada cidade, localizada no norte da Ucrânia Soviética. Ou seja, apesar da dita usina ter sido construída para fins pacíficos, tal infortúnio semeou caos e imenso temor por toda a Europa.
Este fato histórico ilustra bem a chegada da sociedade de distribuição de riscos, a qual substituiu a da distribuição de riquezas. Temos, assim, uma sociedade que se caracteriza pela existência de elevados riscos e por processos de individualização. Não se trata de riscos pessoais, que possuem conotação de certa ousadia e aventura, mas, sim, riscos que configuram ameaça global, como, por exemplo, crises financeiras, terrorismos, catástrofes ecológicas, doenças contagiosas etc. Ante a interligação global, mesmo países não profundamente devastados ou saudáveis economicamente, sentem os efeitos da destruição dos ecossistemas ou da não liquidez de certa nação.
Além disso, os meios de superprodução “modernos” deram origem a riscos invisíveis e com alcance global (seres humanos, flora e fauna), sendo aqueles com potencial de gerar danos muitas vezes irreversíveis. Com estes danos surgem situações de ameaça à sociedade, que se perfectibilizam em diferentes graus a depender da “posição” que se ocupe na estamento social.
No entanto, conforme ensina com maestria o mestre alemão, os riscos, nesta quadra, não escolhem classe social, eles possuem o chamado “efeito bumerangue”, isto é, seus efeitos alcançam os que produzem e também os que lucram. Os riscos biológicos e sociais advindos da Covid-19 mostraram ao planeta – redondo, no caso – que a ameaça é geral.
Assim, todos aqueles que trabalham para retirar direitos da classe trabalhadora, para extinguir as normas de proteção social e para retirar do globo a figura do Estado do Bem-Estar Social (quais sejam gestores públicos, legisladores, rentistas, bancos, “mercado”) contribuirão, inexoravelmente, para o incremento de um imenso dano social, que, sem dúvida, também os alcançará.
E aqui se enquadram os termos da Medida Provisória 927, que, em uma escolha clara a favor dos empresários (nacionais e transnacionais), deixa ao relento os hipossuficientes, aqueles que dependem da renda mensal de seu trabalho para sobreviver; na contramão das medidas adotadas por outros países.
Enquanto França, Itália, Espanha, Canadá e EUA, por exemplo, adotaram medidas para preservação das empresas, mas também para manutenção da renda dos trabalhadores, o Brasil parece caminhar em direção oposta, atendendo, aparentemente, aos interesses de somente uma das partes dessa relação; o que pode ser perigoso para o equilíbrio do tecido social (além de constituir a maior transferência de renda dos “pobres” para “os ricos”).
As normas trabalhistas e de seguridade social não foram criadas ao acaso e não são meros “caprichos”, ao revés, são fruto de muitas lutas e consistem em importantes instrumentos de concretização e salvaguarda dos direitos humanos.
Em uma pandemia, um risco da nossa sociedade atual, os Estados devem direcionar as riquezas, como afirma o analista da ONU Juan Pablo Bohoslavsky, para aqueles que não detém meios de sobreviver à crise, a fim de mitigar os seus efeitos, e não limitar as medidas à recuperação de empresas e bancos.
É bom lembrar que nenhum direito econômico deve sobrepujar o direito ao acesso à saúde e o direito à vida. Se o Brasil optar por outras saídas que não o suporte trabalhista e social, todos nós pagaremos, e pagaremos caro.
*Thaís Fidelis Alves Bruch – procuradora do Trabalho