As palavras são muito importantes. Elas podem dizer bem, podem limitar e podem trair a realidade. Certas palavras e expressões utilizadas no dia a dia, repetidas sem preocupação, podem muito bem conter ou conduzir a distorções.
Um exemplo de distorção de linguagem é o par “público/privado”. Habitualmente, por “público” entendemos o que é do Estado ou do governo, e por “privado” tudo o mais (o que é das pessoas, da sociedade e do mercado).
Esse significado usual está presente tanto na linguagem do cidadão comum como na dos agentes políticos, do mundo jurídico e também na maior parte da literatura. Não é coisa de gente iletrada: é um traço cultural.
Pensando um pouco sobre essas duas palavras, tão importantes pelas consequências que acarretam, nota-se que há um claro engano. Esse par reduz o complexo mundo da vida social e das organizações a apenas duas cores, como se o mundo social fosse preto e branco. Há bem mais sob o céu e a terra do que apenas público e privado. O mundo social é colorido.
Vejamos o caso da palavra “privado”. Quando designamos uma organização criada e mantida por uma comunidade (escola, universidade, hospital, cooperativa, sindicato, associação) com a mesma palavra com que designamos uma empresa particular, pertencente a um ou alguns donos, estamos produzindo uma distorção. Ao chamar tudo isso de privado dizemos que tudo é basicamente o mesmo. Basta chegar mais perto e nota-se que não são o mesmo.
A palavra “público” também não escapa da confusão. Chamamos de público aquilo que é estatal ou governamental e deixamos de fora outros aspectos que dizem respeito a todos. Quando a população se reúne para tratar de um assunto que toca a todos, não está tratando de algo que é “público”?
É hora de repensar a utilização do par “público/privado”, pois atrapalha a nossa visão de mundo e envolve consequências práticas indesejáveis. O caminho passa por voltar às raízes, retomando o sentido original das palavras, e por incluir outro termo para designar um conjunto de eventos específicos.
O sentido original do “público” é aquilo que diz respeito a todos, ao povo, ao coletivo. O sentido original do “privado” é aquilo que diz respeito aos indivíduos e aos pequenos grupos.
A meio caminho entre um e outro está o “comunitário”, aquilo que é próprio das comunidades. Há uma infinidade de acontecimentos e de organizações que são próprias de comunidades étnicas, religiosas, culturais, políticas, residenciais. Esse é o terreno do “terceiro setor”, no sentido amplo de conjunto das organizações mantidas pela sociedade civil para atender interesses da população.
É bem mais que um mero jogo de palavras. A substituição do par “público/privado” pelo tripé “público/comunitário/privado” não é inocente. Ela é essencial para uma nova visão de mundo e para que a legislação trate devidamente as iniciativas da sociedade civil.