Tendo em vista os avanços da era tecnológica, proponho um debate sobre o seguinte tema: veremos (ou já estamos vendo) as crianças passarem muito mais tempo com seus tablets, computadores, videogames, smartphones do que com suas famílias? Se sim, o que esperar?
É fato que esses eletrônicos são parte integrante do mundo moderno, e seria inconcebível que uma criança crescesse sem ter o contato com essa tecnologia. Além disso, cada vez mais professores atribuem aos alunos tarefas que exigem pesquisa na Internet ou trabalho no computador, quando supõem que os mesmos têm acesso a este.
Os smartphones, por exemplo, têm sido muito úteis, pois fornecem alguma forma de segurança para as crianças que estão sozinhas em casa ou estão constantemente fora e precisam se comunicar com a família. Por outro lado, esses aparelhos mudaram a vida de crianças e muitas não cogitam a hipótese de viver sem eles. Mas qual o problema disso? Para os especialistas, nenhum, na medida em que não ocorrem desmedidas, tais como o uso da tecnologia como “objeto de gozo desenfreado”.
Dito de outro modo, o seu uso indevido pode por em risco certas relações primárias importantíssimas à constituição saudável do indivíduo, isto é, à sustentação de sua autonomia. Senão vejamos: quando relações substanciais entre pais e filhos, como passar um tempo juntos por amor e não por dever, ou quando a coleção de “NÃOs” que os pais devem estabelecer com seus filhos, para a constituição nestes de um referencial que imponha certos limites no plano real, são substituídas pelos eletrônicos em questão, o resultado pode ser uma reação psíquica desestrutural.
O psicanalista francês Charles Melman, em seu livro Novas formas clínicas no terceiro milênio, compreende que essas funções parentais basilares estão falindo, em decorrência da conjuntura global tecnicista exorbitante, que estaria encorajando uma “mutação cultural” (a renúncia das particularidades culturais dos povos). Em outras palavras, trata-se de uma conjuntura que vende o “outro” sem sua alteridade, isto é, que leva o outro a ocupar o lugar de semelhante e não mais de alteridade. Sob tal atribulação sistêmica, as crianças correm o sério risco de não mais construírem o registro simbólico da diferença, tão cara à antropologia e tão necessária à convivência social.
Diante disso, que papel tem a família? Ora – repita-se –, ajudar no fortalecimento referencial dos filhos, na potencialização de suas capacidades em compreender a realidade concreta e plural que os cerca, para que suas existências também possam encontrar significado na mesma.
Pais que dão o exemplo ouvem seus filhos, encorajam relações de sentido mútuo, focam na existência possível e inspiram a vontade de vencer desafios, sem o pôr-se aquém ou além dos limites. Estimulam, assim, a construção de laços fortes com as essencialidades que dão corpo ao mundo e à vida.